segunda-feira, 25 de junho de 2012

O HOSPITAL RUTH CARDOSO (4)


 A história do desvio milionário através da Cruz Vermelha 
no hospital Ruth Cardoso


A história encoberta por justificativas, documentos falsos e influência política se revela hoje nas páginas do DIARINHO. João – nome fictício para preservar a identidade da pessoa envolvida há mais de três anos nos projetos da Cruz Vermelha Brasileira – conta tudo o que sabe sobre o esquema milionário de desvio de dinheiro público que se instalou em Balneário Camboriú, mas que não se restringe ao município do litoral catarinense. Ele apontou quatro nomes como sendo os principais responsáveis pela falcatrua: Anderson Marcelo Choucino, Marcos Roberto Romero Sanches, Fernando José Mesquita e M.F.. Segundo João, todo o esquema foi facilitado conforme, pelo caminho, cooptavam outras pessoas. A vaidade, a negligência e a ambição fizeram com que o grupo aumentasse. E, em Balneário, no comando do hospital municipal Ruth Cardoso, não foi preciso um ano para que o desfalque tomasse proporções escandalosas: 176 mortes em seis meses, desvio de quase 25% dos mais de R$ 12 milhões injetados pelo município para serem aplicados na unidade, dois inquéritos instaurados pelo Ministério Público, decretada a intervenção, aberta uma comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no legislativo municipal... Colocaram o Ruth Cardoso na UTI.

Por Cláudio Eduardo

João conta a participação de cada um que transitou pelo esquema em Balneário Camboriú. Destaca, principalmente, a postura de duas lideranças no município que acabaram facilitando a ação do grupo: José Roberto Spósito (PMDB) – que era secretário de Saúde até o fim de março deste ano e ainda presidia a comissão de Acompanhamento e Avaliação do Ruth Cardoso – e o presidente do conselho Municipal de Saúde (Comus), Luiz Fernando Brito, que também era membro da comissão que fiscalizava o hospital. Os dois, além de saberem de tudo, colaboravam e tiravam vantagens, segundo João. Ele ainda acrescenta que o gestor do fundo Municipal de Saúde (responsável pela liberação do dinheiro), Rafael Schroeder (PMDB), que assumiu a pasta depois que Spósito se afastou, sabia de tudo. E pecou pelo silêncio. Quanto ao prefeito Edson Periquito (PMDB), João isenta de qualquer culpa com relação ao desvio de dinheiro público. Diz que a falha do prefeito foi o interesse político, ao forçar a contratação de pessoas indicadas por ele para ocupar cargos dentro do hospital.



DIARINHO – A Cruz Vermelha gaúcha abriu duas contas bancárias em Balneário Camboriú, qual o motivo?
João – Dentro desse modelo de operação que eles fazem, tentam fazer uma grande confusão na movimentação bancária, para depois deixar brecha para justificar na prestação de contas. Um grande exemplo disso é aquela nota de R$ 600 mil do Maranhão. É muito simples apurar. Não interessa para onde foi, mas, aquela nota se refere à compra do quê? Por que não mostram a nota fiscal do que foi comprado com aquele R$ 600 mil? Disseram que foi um dinheiro de empréstimo, se esse dinheiro foi emprestado, foi para comprar alguma coisa: comprar o quê? Uma outra mentira que existe nessa história é que os equipamentos do hospital estavam sucateados. Isso é mentira. Faltavam alguns equipamentos, mas os que estavam lá, salvo o tempo parado, estavam em excelente condição. O que aconteceu foi uma festa a partir da abertura do hospital envolvendo médicos e profissionais que usaram, detonaram, estragaram, roubaram equipamentos do Ruth Cardoso. Toda tentativa de organizar um modelo de gestão no Ruth Cardoso, na eminência da abertura ou logo após, foi rechaçado por Marcos Roberto Romero Sanches, por M.F., José Roberto Spósito, Luiz Fernando Brito... Porque eles não queriam contratar nada. Teve quatro trocas de farmacêuticos porque eles não queriam que controlasse remédios. Teve uma primeira compra enorme onde os remédios que foram comprados não eram ideais para o atendimento do Ruth, de média complexidade. Eram adequados para o atendimento do consultório das pessoas que estavam interessadas em subtrair dali os medicamentos. A primeira compra de medicamentos, se você pensar que todos os profissionais da saúde envolvidos (gestor do Fundo, secretário de Saúde) sabiam que era um hospital de média complexidade, foram alertados e continuaram com a compra, não tem como dizer que não existiu dolo. [E disso sabia tanto o gestor, quanto o secretário, quanto o presidente do Conselho?] Sim. E fizeram juntos. Existia uma rotina de reuniões de M.F. e de Marcos Sanches com Brito e Spósito. Eu coloco num patamar diferente disso o atual secretário, o Rafael Schroeder, mas que cometeu o pecado do silêncio. Ele sabia. Mas nunca o vi envolvido diretamente, querendo ter ele o benefício financeiro. Mas que ele sabia, ele sabia. O cenário que ele pegou como secretário de saúde nunca foi novidade pra ele. Então, essa demonstração de surpresa, de que ele vai ter que arrumar a casa, isso é teatro! Não posso ser leviano de dizer que ele colocou a mão em algum dinheiro ou que ele tinha interesse nos esquemas. Mas saber que as coisas aconteciam, ele sabia. Agora, tanto o Brito, sempre como menino de recados do Spósito, como o Spósito, que estava empolgado vendo que podia fazer a festa, em vários momentos deu para perceber que eles estavam interessados num esquema de benefício pessoal. E, para isso, fecharam um grupo com Marcos Sanches e com M.F.. E aí era cordeiro assado, era churrasco... Spósito e Brito falavam que podiam tudo porque eles eram da maçonaria e a maçonaria mandava na cidade.

DIARINHO – Quanto aos atendimentos, existe um responsável pela situação em que chegou o hospital?
João – Não existe desculpa para o município de Balneário, porque o secretário de Saúde, o gestor do Fundo, o presidente do Conselho, o prefeito, tinham que ter feito algo. É um hospital de média complexidade em que estavam forçando a barra para se tornar de alta complexidade por causa de interesse do secretário e do M.F.. Do ponto de vista médico, o que acontecia ali, na direção do M.F.... A orientação não era prestar um bom atendimento. O paciente era um detalhe para eles.

O berço do esquema

Ao longo da entrevista, João fala inúmeras vezes do centro Integrado e Apoio Profissional (Ciap) que, para ele, teria sido o berço do esquema que se instalou em algumas filiais da Cruz Vermelha Brasileira. Em maio de 2010, a polícia Federal deflagrou a “Operação Parceria”, que desarticulou um esquema fraudulento de desvio de recursos públicos federais que deveriam ser empregados pela Oscip (organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que tinha a principal sede em Londrina/PR. Além da cidade paranaense, a operação se alastrou para os estados de Goiás, São Paulo, Pará e Maranhão. Ao todo, foram expedidos 14 mandados de prisão temporária e 40 de busca e apreensão.
O esquema usava a Oscip para firmar parceria com prefeituras. Assim que os projetos eram aprovados, sempre nas áreas da Saúde e Educação, a organização recebia os recursos federais, numa movimentação média de R$ 130 milhões por ano. A investigação conjunta conduzida pela controladoria Geral da União, Ministério Público Federal e receita Federal, apontou que o Ciap fazia de tudo para demonstrar que a verba estava sendo aplicada, conforme o contrato. Contudo, descobriram que 30% dos recursos eram transferidos para uma conta centralizadora. A desculpa era de que precisavam atender aos custos administrativos.
A operação estimou que os desvios irregulares passaram de R$ 300 milhões em cinco anos. Depois que o dinheiro estava na conta centralizadora, valores altos eram sacados sem identificação, outro montante era destinado a pagamento para empresas que a investigação descobriu, na verdade, pertencerem a familiares e pessoas de confiança dos responsáveis pelo Ciap.
No dia 30 de agosto do ano passado, a Justiça Federal condenou 12 dos 16 acusados de participarem do esquema de desvio milionário. Dentre os crimes, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Um dos que foi julgado é quem, segundo João, é o consultor de Anderson Marcelo Choucino no esquema da Cruz Vermelha: Fernando José Mesquita. Ele era responsável pela assistência jurídica do Ciap e foi condenado a 15 anos e nove meses de reclusão em regime fechado.

“Ele se vale das situações agudas
para fazer os grandes desvios”

 
                                                               Anderson Marcelo Choucino - Foto: Cláudio Eduardo


DIARINHO - Como começou o esquema que se instalou na Cruz Vermelha e se alastrou até Balneário Camboriú?
João – Esse esquema já estava planejado desde o primeiro projeto feito com a Cruz Vermelha. Foi um esquema herdado do Ciap. Basta pegar a história que já foi desvendada pela polícia Federal, o modo de operação dos dirigentes do Ciap, a confusão que faziam na conta corrente, o modelo de gestão financeira, a rotatividade das pessoas que administravam os projetos – eles nunca deixavam um supervisor muito tempo num projeto justamente para não perceber o que estava acontecendo. O esquema de funcionamento desses desvios é sempre proteger os cabeças. Eles não aparecem. Você não vai encontrar o cabeça desse esquema com uma conta no nome dele ou com uma transferência para ele. Você vai encontrar para irmã dele, para o irmão... As pessoas que estão aplicando este golpe em Balneário não escaparam à toa do Ciap. Elas escaparam porque realmente são precavidas e estão antenadas nas situações que podem gerar algum transtorno para elas. O que tem de errado? É a repetição. Eles não tomaram o cuidado de diversificar as atitudes. Qualquer operação mais esclarecida vai encontrar no passado exatamente o mesmo modo de agir. A coisa de Balneário não é nenhuma novidade. E eles sabem direitinho quais são os passos da CPI, quais são os passos da imprensa, e atuam nos bastidores para silenciar, para abafar. O tempo gira a favor dessa quadrilha, porque as coisas vão perdendo força, a revolta popular vai perdendo força. Então, eles têm que aguentar o furor da revolta naqueles dois primeiros meses. Depois começa a existir interesse político, derramam dinheiro aqui ou ali, mandam dinheiro para um deputado, posam de bonzinhos para um vereador, abrem novo diálogo com um executivo. E daí a coisa acaba perdendo força. E aí fica impune o desvio que acabou ceifando vidas, desviando remédios, que estragou equipamentos... Isso vem acontecendo há algum tempo e com quantias enormes de dinheiro. [Na Cruz Vermelha, o esquema começou logo após estourar o caso do Ciap?] Começou. E uma boa parte da equipe que foi originalmente para a CVB do Maranhão trabalhava no Ciap. Não julgo que essas pessoas tinham a consciência que Anderson Marcelo Choucino fazia o que faz. Foram também vítimas deste golpe.

DIARINHO – O Anderson Marcelo é o cabeça de todo o esquema, desde a época do Ciap e, principalmente, na questão da CVB?
João – Na questão da Cruz Vermelha, com certeza absoluta. Eu não posso te dizer, porque eu não vivi lá no Ciap, mas eu tenho a clareza que o modo de agir dele lá foi o mesmo que na Cruz Vermelha e que muita gente – não que fossem santos ou que não tivessem culpa, porque isso a apuração da Justiça que demonstrou a vantagem pessoal que cada um teve – pagou por ações de Anderson Marcelo.

DIARINHO – Como ele entrou no esquema, tanto do Ciap quanto da CVB?
João – Anderson Marcelo é de uma família rica, o pai dele é um grande fazendeiro de Londrina, tem fazenda no Mato Grosso. Lá com seus 20 anos de idade, foi presidente de uma associação de moradores e agricultores em Londrina. E, já naquela época, ele envolveu essa organização em campanhas para arrecadação de dinheiro e tentou transformar essa associação em instituição de utilidade pública. Isso em 1995 ou 1996. Eu imagino que desde essa época ele vem formatando essa ação que faz hoje. Ele deu preferência por atuar no Terceiro Setor justamente porque tem uma fiscalização mais condescendente. Eu acredito que um ser humano normal – e hoje eu não acho que ele é uma pessoa normal – sempre vai imaginar que alguém, por mais picareta que seja, vai ter um mínimo de princípio e não vai, por exemplo, roubar dinheiro das pessoas que foram vítimas da enchente no Rio de Janeiro. Não é o caso dele. Ele não tem escrúpulos. Ele se vale das situações agudas para fazer os grandes desvios.

DIARINHO – Notícia de 2010, da cidade de Sinop/MT, diz que quem apresentou a ideia da Cruz Vermelha assumir a gestão de um hospital de lá foi um assessor de gabinete da secretaria estadual de Saúde do Paraná, M.F.. Ele quem fazia esse trânsito político?
João – M.F. tinha relação com essas pessoas, com Anderson Marcelo e com Marcos Sanches, desde os tempos do Ciap. M.F. foi consultor do Ciap para vários projetos que eles fizeram. O golpe vem acontecendo há bastante tempo... E vem acontecendo com as mesmas pessoas. Por que M.F. teve muito interesse em Balneário? Porque ele estava no Paraná, era próximo dele. Mas ele participou de outros: foi para Porto Velho/RO, ele esteve em Sinop, em todo o interior do Paraná, tentando achar, com a bandeira da Cruz Vermelha, a oportunidade de aplicar o mesmo golpe que aplicou com o Ciap, quando ele teve projetos na cidade de São Paulo, no interior de São Paulo, no Rio de Janeiro. O M.F. sempre teve contato com empresários que se envolvem em licitações. E o M.F. tinha medo que o nome dele aparecesse em alguma coisa, era o mais medroso.

DIARINHO – O berço desse esquema então foi o Ciap, no Paraná, e dali foram para as regionais?
João – Isso. Eu sei que a amizade entre Anderson Marcelo e Marcos Sanches nasceu porque os dois entraram praticamente na mesma semana no Ciap. Ao passo que Marcos, num determinado momento, preferiu ficar onde estava, em Londrina, e Anderson foi para o Norte e Nordeste, onde praticamente criou um império para o Ciap lá.

DIARINHO – Por que o dinheiro do Ruth Cardoso – conforme confirmado pela movimentação bancária – era enviado para o Maranhão?
João – Porque era o local de moradia e de escritório do Anderson Marcelo, que era o chefe da quadrilha e que mandava em tudo. Toda a estrutura de escritório do Anderson Marcelo estava no Maranhão. A presidente da filial do Maranhão [Carmem Moreira Serra], assim como o Nício Brasil Lacorte faz hoje, fazia tudo que o Anderson Marcelo mandava. Até que ela percebeu o quanto foi usada nessa situação. Dou a ela o benefício da dúvida se estava envolvida neste envio de recurso para o Maranhão. Sei dizer que Anderson Marcelo sim, porque no Maranhão ele tinha tanto o escritório quanto o esquema para fazer os desvios: empresas, os primos dele que faziam todos os pagamentos de lá, toda a estrutura que ele tinha para fazer as maracutaias nos cartórios, gráfica... Está tudo no Maranhão. [Alguma das empresas do Maranhão que recebeu recursos do Ruth Cardoso prestou serviços em Balneário Camboriú?] Nunca. Aliás, as empresas sempre foram utilizadas por Anderson Marcelo para tirar o dinheiro dele. Ele apresentava uma nota de serviços para a Cruz Vermelha, de um serviço que nunca tinha sido prestado, e tirava o dinheiro dele disso. Isso em Balneário ficou escancarado. O sacador de tudo isso é ele. Ele é uma sombra, é sagaz, é esperto. Só que ele tem cometido o pecado de atuar da mesma maneira há muito tempo. Ele não mudou uma vírgula do golpe dele. O que me faz questionar o real interesse que existiu até hoje em investigar este cidadão. Normalmente ele é muito contido. Mas presenciei situações em que falava uma frase que resumia bem, ele dizia: “todo mundo pode participar, todo mundo pode fazer, mas só quem sabe a história inteira sou eu”.

DIARINHO – Anderson Marcelo era vice-presidente da CVB nacional e foi expulso. Qual o motivo?
João – Ele começou a ser muito pressionado, principalmente por conta do que tinha acontecido com os recursos da campanha de doação que tinha sido feita na época das enchentes do Rio de Janeiro – aquela tragédia que matou um monte de gente. A Cruz Vermelha recebeu muito dinheiro nessa época. E Anderson Marcelo botou esse dinheiro no balaio de gato dele. E isso foi um dos motivos que levou a uma cobrança muito grande até que aconteceu uma assembleia extraordinária da Cruz Vermelha onde ele foi execrado, porque não conseguiu dar nenhuma explicação plausível do destino que foi dado para esse dinheiro. Somado a isso, tinha a relação dele com uma pessoa que foi condenada no processo do Ciap, que é o doutor Fernando José Mesquita, que é cunhado do Marcos Roberto Romero Sanches. A hora que isso começou a vir à tona, ele começou a ficar numa situação insustentável dentro da Cruz Vermelha, que vem lutando para se reerguer. A Cruz Vermelha passou por processos de corrupção e, a partir do momento que começou a estourar essas maracutaias, estourou a história do Maranhão, ele começou a ser colocado na parede. Como ele não conseguiu justificar nada...

DIARINHO – Com a saída dele da nacional, como e por que ele foi parar na filial do Rio Grande do Sul?
João – Ele foi execrado, mas não pela totalidade. Ele conseguiu abrigo em algumas filiais: a dos três estados do Sul. [Por isso então foi firmado aquele contrato de cooperação técnica entre essas filiais, que foi o documento que validou a participação da filial gaúcha na licitação ao preencher o quesito experiência em gestão hospitalar?] Aquele contrato já é uma gambiarra , porque é fato: a Cruz Vermelha do Rio Grande do Sul não tem experiência em gestão hospitalar. [Fraudaram o processo licitatório?] Fraudaram. O processo licitatório estava acertado. Tudo o que foi apresentado de documentação foi orientado pela própria prefeitura. Um processo muito contaminado. [E de quem partia esta orientação da prefeitura?] Que eu saiba, antes do hospital, Rafael Schroeder tinha uma participação menor presenciando algumas coisas, muito fortemente o José Roberto Spósito, mas não sei dizer quem da estrutura da prefeitura dava as informações para M.F. e Marcos Sanches. Mas davam.

DIARINHO – Na diretoria do Maranhão permanecem as mesmas pessoas que estavam em 2010, quando, segundo consta em ata, participavam familiares de Anderson Marcelo?
João – Não. A presidente rompeu com Anderson Marcelo, pelo que sei. Então, ela trocou toda a diretoria. Anderson Marcelo nega qualquer envolvimento na Cruz Vermelha. Um grande mentiroso. No Maranhão eram todas pessoas ligadas a ele, pessoas que não davam um passo sem perguntar a ele. [Quando Anderson Marcelo ainda estava na nacional, ele já tinha esse contato com a filial do Rio Grande do Sul?] Foi Anderson Marcelo que escolheu qual filial que iria participar em Balneário. E por que ele não colocou a filial do Maranhão? Porque a do Maranhão não tinha documento em ordem, não tinha certidão negativa de débito, não poderia se candidatar. [A gaúcha era a mais limpa?] Documentalmente. Era a que ele conseguiria com poucas fraudes colocar no processo.

DIARINHO – Quais médicos eram do esquema e como funcionava?
João – O médico do esquema dentro do hospital era o M.F.. E prostituiu muito a relação com os médicos: ofereceu vantagens por fora, negociou sem autorização superior, valores, procedimentos. Num primeiro momento, M.F.esteve muito próximo de Spósito. O primeiro diretor clínico foi um consenso dos dois. Teve uma situação que foi muito emblemática. Às vésperas de abrir o hospital, definiram que o médico Milton Santoro ficaria com uma das clínicas e, quando o nome dele surgiu, um promotor entregou um dossiê que existia contra ele, dando conta que ele fraudou (não exame como estava acontecendo no Ruth), cirurgia para pacientes que não precisavam. O promotor, naquela época, teve o interesse de dizer “olha, eu estou mostrando para vocês terem cuidado com essa pessoa e ver se querem mesmo essa pessoa no hospital”. E quando foi apresentado este fato para o M.F., ele leu o dossiê e disse “desse cara é que eu preciso!”. E depois esse médico virou diretor no lugar do M.F..

DIARINHO – Dentre as notas de prestação de contas, a dos médicos consta apenas “prestação de serviços”, ou cobrança relativa ao trabalho de 30 dias por mês, 24 horas por dia. É o procedimento?
João – Isso foi feito sob orientação do M.F. e proteção do Marcos Sanches, que é quem tinha procuração para fazer movimentação financeira. Sanches trouxe o próprio genro, que é um menino, que trabalha no escritório daquele advogado condenado pelo Ciap que é cunhado do Marcos. Esse advogado, que é funcionário do Fernando José Mesquita, foi levado ao hospital para fazer contato com os médicos, isso em novembro, com o hospital mais de um mês funcionando. Essas notas entraram depois, e entraram para encobrir o que foi feito. [O M.F. tinha uma equipe que vinha com ele do Paraná?] Não, era ele sozinho. Ele vinha e cooptava todos. Ele já tinha indicação política. Ele não chegou na cara dura em Balneário. Ele chegou indicado, com um caminho já traçado. [Ele era quem tinha maior participação política, então?] Foi ele quem arrumou o projeto. [E o Marcos Sanches, continuou atuando no Ruth Cardoso?] Ele continuou e até um mês atrás estava em Balneário numa cobertura alugada pela Cruz Vermelha. Quem alugou essa cobertura para ele foi uma pessoa indicada pelo Rafael Schroeder. Ele continua no esquema e, mais do que isso, foi ele quem apresentou o projeto do hospital, pela Cruz Vermelha de Santa Catarina, para o município de São Francisco do Sul. E que está agora, neste momento, negociando para o hospital de Biguaçu. [Por que não mais com a CVB gaúcha?] A presidente da filial de Santa Catarina, Rosângela Zavarizzi, é hoje a pessoa que está magnetizada pelo Anderson Marcelo. Hoje ela ocupa o cargo que foi de Carmem, que foi de Nício... Ela é a bola da vez. É por aí que o esquema está seguindo. [E quanto ao Nício?] Ele caiu no conto do vigário. Não acho que seja ingênuo. Já percebeu, mas está preso na teia de Anderson Marcelo. A meu ver, assumiu uma estratégia errada, que foi de assumir pra si e defender para tentar salvar a filial.

Participações no município, segundo João:

• Ex-secretário de Saúde, José Roberto Spósito:
“Além de ter absolutamente 100% de influência em tudo que aconteceu, de estar ‘casado com M.F. nas coisas que aconteciam, de estar muito próximo com Marcos Sanches, de fazer almoço, jantar... Além disto, ele tinha todo o serviço de diagnóstico por imagem, que ele colocou um laranja mas quem respondia por toda essa parte era ele. No começo, M.F. abriu a boca sobre isto, disse que a parte de imagem já estava acertada: era do Spósito. Tudo que era imagem: raio-x, ultrassonografia, tomografia... Ele disse que já era do Spósito. Tanto que o índice de realização de exames de imagem nos pacientes que entravam no pronto-socorro no primeiro mês era coisa de 90% dos que passavam lá tinham que fazer um raio-x. E sem propósito”

• Presidente do Comus, Luiz Fernando Brito:
“É o menino de recados do Spósito. O Brito era o ponto de cruzamento de todas as figuras, era quem chamava para churrascos... Ele não tinha sala dentro do hospital porque ficava o tempo inteiro na dos diretores, que era o que queria, para saber o que estava acontecendo. [Foi Brito quem disse “faz uma nota num valor alto que na comissão eu dou jeito de aprovar a prestação de contas”?] Isso é verdade. Realmente existiu. E foi daí que surgiu esse argumento do empréstimo. Eu não sei dizer se isso foi uma ideia do Brito ou se ele assumiu um discurso do Sanches e do Anderson Marcelo. Eu sei dizer que o beneficiário foi o Anderson Marcelo. [Existia esquema para que empresas que não pagassem propina não recebessem?] Isso é parte desses golpes do Anderson Marcelo, do Sanches e desse pessoal todo: recebe quem entra no esquema”

• Gestor do Fundo e atual secretário de Saúde, Rafael Schroeder:
“Não vejo que ele tenha interesse financeiro nisso. Ele não é da quadrilha de baixo nível de desfalque roubando remédio de doente. Mas existe uma nuvem no comportamento dele por saber que ele tinha conhecimento das ações do Brito, do Spósito, dos esquemas do Marcos Sanches, do M.F., e ficou quieto. Ele ficou em silêncio, se beneficiou em ser escolhido o substituto do Spósito. Mas não vejo ele com a mesma ganância que todos os outros tinham. O pecado dele foi o silêncio, foi ser conivente”

• Ex-gerente de Compras do hospital, Carmem Nascimento:
“É uma das coisas que me faz questionar o Rafael, porque era amiga dele, pessoa recomendada e que ele fez pressão para a contratação. E foi justamente a pessoa que engatou com Marcos Sanches e abriu a porta para todos os desvios que aconteceram ali. E tiraram ela de cena quando a coisa degringolou e ela foi de novo pra debaixo da proteção da prefeitura”

• Prefeito Edson Periquito:
Desde o início, sempre cobrou um bom atendimento, que as pessoas fossem bem tratadas. Como Rafael teve o pecado do silêncio, Periquito teve o do interesse político. Ele fez pressão e botou goela abaixo pessoas que eram do interesse dele que estivessem lá. [E estas pessoas interfeririam de alguma forma na questão administrativa dentro do esquema?] Uma ou outra, porque Carmem, por exemplo, foi uma imposição. Mas grande parte das pessoas, apesar da vinculação política, estava lá para trabalhar. A intenção era indicar o pessoal dele. É errado? É. Mas perto de tudo que estava acontecendo, isso era nada. E não foi algo isolado dele. Do mesmo jeito que ele mandou as pessoas que queria, o Spósito fez a mesma coisa, o Rafael também. E existia um racha entre o Periquito e o Spósito. A grande situação envolvendo os dois era o interesse na próxima eleição. O Spósito tinha o sonho de conseguir criar uma situação política tão grave para o Periquito que inviabilizasse a reeleição dele. O sonho do Spósito era ser prefeito!”

“A nota de R$ 600 mil nunca existiu”

Rafael Schroder garante que não sabia de nada. Quanto à acusação de que indicou a ex-gerente de Compras, Carmem Nascimento, também nega. Conta que ela era uma servidora na secretaria de Saúde e que foi convidada pela Cruz Vermelha para trabalhar na unidade justamente por conhecer muitos fornecedores. “Ela recebeu proposta melhor e decidiu ir. Foi uma opção dela. Se nós realmente tivéssemos interferido na contratação, colocado gente de confiança lá, a situação não teria chego a esse ponto”, justificou o secretário, isentando o município da acusação de que indicou funcionários para atuar no Ruth Cardoso. Carmem confirma que pediu exoneração da prefeitura para encarar o desafio no hospital, principalmente por causa do salário.
Além disso, Rafael disse que, depois de seguidas denúncias de mau atendimento, ficou em alerta. E ficou ainda mais intrigado quando o conselho Municipal de Saúde (Comus), que é presidido por Luiz Fernando Brito, apresentou parecer aprovando as contas do hospital. “O Comus nunca analisou minhas contas do Fundo alegando que não tinham estrutura. Como é que fizeram isso com a do hospital?”, indagou o secretário – que assumiu o posto deixado por José Roberto Spósito em 30 de março deste ano.
Brito também se isenta de qualquer culpa. “Se existir algum erro financeiro por parte da Cruz Vermelha, e eu como membro da comissão não vi, não vou defender erro de desvio financeiro de ninguém”, ressaltou. Ele negou ter participado de qualquer jantar com a diretoria da Cruz Vermelha pago com dinheiro público e de ter tirado qualquer vantagem por ocupar a presidência do Comus. Quanto à nota de R$ 600 mil da CVB/MA, assume ter participação. “O repasse já existia. O que foi discutido é que não havia como analisar passagens aéreas, quanto ganhou cada um... Por isso só apresentar a nota global que no teor tivesse isso escrito”, defendeu.
Carmem conta que Brito estava quase todos os dias no hospital, pedindo, inclusive, acesso às notas fiscais. Entretanto, ele mesmo assume que depois da intervenção do município, mesmo ainda sendo presidente do Comus, não pisou mais na unidade. Como gerente de compras desde agosto – dois meses antes da abertura do Ruth Cardoso – Carmem assegurou nunca ter visto o tal documento fiscal. “A nota de R$ 600 mil nunca existiu. Diziam que era para implantar o sistema informatizado. Esse sistema não existe até hoje”, destacou. Carmem ainda confirmou que a contratação da equipe médica era feita por M.F. e que as contas eram pagas pelo Rio de Janeiro e que quem operava a movimentação era um assessor de Anderson Marcelo Choucino, que ainda estava na vice-presidência da Cruz Vermelha nacional.
Quanto à participação de M.F. e Marcos Sanches no hospital municipal, o presidente da filial gaúcha da Cruz Vermelha, Nício Brasil Lacorte, diz não haver vínculos entre eles e a entidade. Apenas Anderson Marcelo é ligado à organização por ter participado da diretoria no Rio de Janeiro. “Anderson Marcelo é do movimento, ex-vice-presidente nacional (ainda sub judice). O órgão central da Cruz Vermelha estava presente com a filial do Rio Grande do Sul nesse projeto de Balneário Camboriú. Agimos orientando e buscando a construção de um diálogo mais efetivo com a municipalidade. M.F. é médico no hospital, não é do movimento de Cruz Vermelha, nunca fez parte da direção da instituição, e Marcos Sanches foi um colaborador na implantação do projeto e recebeu por isto”.

“Não temos que proteger nenhum criminoso”

                                                                   Depoimento de Spósito na CPI - Foto: Cláudio Eduardo

Depois de dois meses de trabalho, a comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou as irregularidades na administração do hospital Ruth Cardoso finalizou a fase de depoimentos. Na última sexta-feira, às 19h, o relator Marcos Kurtz (PMDB) concluiu o relatório e protocolou na câmara. Amanhã deve entrar na pauta o texto para que os vereadores possam, caso achem necessário, apresentar emendas e, por fim, aprovem o documento produzido pelo inquérito legislativo.
“No relatório apontamos tudo que foi apurado e que teve provas. A quebra do sigilo bancário, por exemplo, nos ajudou a esclarecer muitas coisas. Valeu mais os documentos do que os depoimentos”, comentou Kurtz, que também é líder da base governista. Mesmo assim, garante que não misturou as funções e que o relatório não vai excluir quem merece ser punido. “Apontamos os nomes de quem estava envolvido. E a conclusão é que teve desvio de finalidade do gasto do dinheiro público”, adiantou.
O presidente da CPI, Claudir Maciel (PSD), disse que espera que nenhum nome seja poupado no relatório da comissão. “Espero que haja imparcialidade política, porque não temos que proteger nenhum criminoso”, salientou o vereador – que compõe a bancada de oposição. Claudir defende que os envolvidos respondam criminalmente. “A conclusão é que se instaurou uma quadrilha no Ruth Cardoso com a finalidade de obter lucro com o sofrimento do povo”, finalizou o parlamentar.


Reportagem publicada no jornal Diário do Litoral - DIARINHO
em 25 de junho de 2012

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