segunda-feira, 21 de maio de 2012

O HOSPITAL RUTH CARDOSO NA UTI


 

Quando o dinheiro é mais importante que a vida


 Por Cláudio Eduardo
 
Nos seis meses em que a filial gaúcha da Cruz Vermelha Brasileira administrou o hospital municipal Ruth Cardoso, em Balneário Camboriú, foram registrados 176 óbitos. Destas mortes, 22 envolveram crianças de até três meses de idade – metade apontada como fetos, por não terem sobrevivido fora do ventre materno. Esses números levantam a hipótese de que o entupimento das artérias do setor administrativo teve sequelas graves na área clínica do hospital. Se as suspeitas de desvios milionários de dinheiro público pelos administradores do hospital ainda estão sendo investigadas, quem viveu na pele o mau atendimento faz questão de mostrar que o seu sofrimento é real. E, nestes casos, não há mais o que remediar. Na paradisíaca Balneário Camboriú, dita a capital do Turismo de Santa Catarina, a Saúde pede socorro.


Foto: David T. Silva

“Mesmo que aconteça algo que eu não tenha opção, 
não penso em ir naquele hospital de novo”

Desde que perdeu um bebê poucas horas depois do parto, a dona de casa Iara Senem já não consegue mais sair de casa. Aos 36 anos, largou o emprego de diarista e mal pode fazer os serviços domésticos. E não são as consequências psicológicas da perda que impedem Iara de seguir a vida. O problema é físico. Um parto normal forçado acabou resultando na morte do nono filho e deixando marcas que, passados seis meses, Iara ainda luta para superar: ela sofre de incontinência urinária e fecal e não pode dispensar o uso diário de fraldas.
Numa casinha humilde no alto de um morro de Balneário Camboriú, Iara guarda – do lado de uma bíblia de páginas amareladas – a única lembrança que restou de Alex, o filho caçula que não sobreviveu sequer um dia: uma foto em que ela exibe a barriga com o nome do bebê escrito, tirada antes do nascimento. E foi só. Ainda hoje lamenta não ter podido tirar uma fotografia do último dos nove filhos. Ele é uma das 22 crianças que morreram na maternidade do hospital municipal Ruth Cardoso durante os seis meses em que a Cruz Vermelha Brasileira, filial do Rio Grande do Sul, administrou a unidade.
Entre cesarianas e partos normais, o Ruth Cardoso realizou 760 atendimentos na maternidade de outubro do ano passado até abril deste ano – quando houve o decreto de intervenção do município no hospital e o afastamento da Cruz Vermelha. E 22 mães choraram suas perdas. Em metade dos casos são apontados como fetos, por já terem nascidos mortos, outros 11 chegaram a sobreviver por um curto período. Portanto, o Ruth Cardoso atingiu o índice de 28,94 óbitos por mil atendimentos. Um número 44,7% maior que os 20 óbitos por mil atendimentos do hospital Marieta Konder Bornhausen, na vizinha Itajaí, cidade ainda mais populosa que Balneário.
Contudo, pouco importam os números para quem viveu a agonia do mau atendimento. Iara não consegue esquecer nenhum dos minutos que passou internada no Ruth Cardoso. A dona de casa estava grávida de nove meses. Sentiu dores, por isso correu para o hospital. No entanto, a bolsa não tinha se rompido. Era dia 13 de novembro de 2011. Mesmo assim, os médicos a deixaram internada. Segundo Iara, começaram a estimular as contrações. “Dos meus outros filhos, sempre optei pelo parto normal porque a recuperação é mais rápida. Mas pedi umas quatro vezes para ser cesariana, porque eu sabia que ele não ia nascer de parto normal. Um médico me disse que ali não tinha como, se fosse em outro hospital ele até atenderia meu pedido”, recorda.
Já na mesa de parto, novamente Iara teria pedido para o médico que fizesse cesariana e tentou explicar que não estava com as dores do parto. “Eles nem me ouviam e começaram a forçar minha barriga para o bebê nascer. Quando ele saiu, já não se mexia. Mas levaram dizendo que estava vivo”, conta.
Em menos de 24 horas, voltaram com a notícia de que Alex tinha falecido.“Eu fiz todos os exames e fui para lá sabendo que estava tudo bem. Mesmo assim, saí sem meu filho. A médica me disse que ele era todo perfeitinho”, afirma Iara. No atestado de óbito que ela guarda numa pastinha junto com todos os exames da gestação, consta que o bebê morreu de falência múltipla dos órgãos. Entretanto, a mãe ressalta que no velório viu muitas manchas roxas no corpo da criança e, inclusive, um afundamento na testa. Ela não tem dúvidas de que, se não tivessem forçado o parto normal, o filho estaria vivo. “Uma sobrinha e uma cunhada também estavam grávidas e foram ganhar o bebê no Marieta. Por medo de voltar lá. Mesmo que aconteça algo que eu não tenha opção, não penso em ir naquele hospital de novo”, confirma, traumatizada.
Hoje, a Cruz Vermelha já não se pronuncia sobre nenhum dos casos. No entanto, há seis meses, emitiu nota culpando Iara pela própria tragédia. “Durante o trabalho de parto o bebê desenvolveu distócia de ombros, ou seja, encravamento de ombros. A mãe, que não estava no momento colaborativa, fechou as pernas no período impulsivo, agravando mais a situação”, justificou. Na mesma nota oficial, foi informado que não realizaram cesariana porque a paciente já tinha passado por outros oito partos naturais. Iara não pensa em ter mais filhos. Não quer correr o risco de passar pelo mesmo sofrimento. “Minha barriga ainda está inchada. Por isso, às vezes, as pessoas me perguntam se eu estou grávida: aí vem toda a lembrança. Depois desse dia, não tive mais paz!”, afirma, emocionada.


Daphyne ainda procura pelo corpo do filho que sumiu do hospital

O dia 11 de março de 2012 tinha tudo para ser uma data comemorada todos os anos pela estudante Daphyne Kethy Souza, de 23 anos. No entanto, é uma data que ela quer esquecer. Família e amigos lotaram a recepção do Ruth Cardoso: todos queriam ver o pequeno Lucas. Mas não foi o que aconteceu. “Eu estava de oito meses. Fui para o hospital achando que estava tudo bem, que nasceria prematuro, mas que sairia de lá com meu filho. Não tinha nenhum médico na sala e as duas parteiras que me atenderam disseram que ele tinha nascido morto”, relata.
No turbilhão das emoções, perguntaram se Daphyne preferia enterrar o bebê ou doar para uma universidade fazer estudos e, ao mesmo tempo, apontar o motivo da morte. Mesmo sem assinar qualquer documento, ela autorizou o envio para a universidade do Vale do Itajaí (Univali). Entretanto, o corpo nunca chegou lá. De maneira informal, ela foi comunicada pelo Ruth Cardoso de que a instituição não aceitou o bebê, por isso teria sido enterrado como indigente. Contudo, a versão foi desmentida pelo técnico do laboratório de anatomia da Univali, Fábio Aureliano Rafael. “Esse material é muito importante, de grande valor. Jamais negaríamos”, garantiu.
Na época, através de assessoria de imprensa, o Ruth Cardoso tentou mais uma vez justificar. “A mãe colocou à disposição da Univali, que não teve interesse. Então a funerária levou o corpo e o hospital não tem nada a ver com isso”. Lucas teria sido enterrado no cemitério da Barra, em Balneário. Mas não há confirmação oficial. A funerária São Jorge não quis se pronunciar sobre quem teria realmente autorizado o enterro. Daphyne já denunciou o caso à polícia, prestou depoimento e aguarda resposta.

Morreu porque não tinha dinheiro


Foto: David T. Silva

“Foi uma negligência muito grande. Ele 
queria ganhar dinheiro, mas eu não tinha como pagar”

Alexandra da Silva coloca na mesma dosagem o sofrimento pela morte da mãe e a indignação com um médico que teria pedido dinheiro para fazer a cirurgia que salvaria a vida da dona de casa Adriana Teixeira da Silva, 56 anos. “Minha mãe acordou de madrugada com dor abdominal. Levamos para o Ruth Cardoso. Eles medicaram e mandaram embora”, recorda.
A auxiliar de laboratório de 30 anos conta que a situação se repetiu várias vezes. A mãe ia mal, medicavam e mandavam para casa. No entanto, numa dessas idas e vindas, Adriana teria recebido uma proposta de um médico – a filha ainda guarda o papel em que consta o telefone e endereço que foi entregue para Adriana junto com o pedido de R$ 3 mil para a realização da cirurgia. “Foi uma negligência muito grande. Ele queria ganhar dinheiro, mas eu não tinha como pagar, por isso fui num hospital do SUS [Sistema Único de Saúde]”, afirma.
A cobrança seria para tirar Adriana do Ruth Cardoso para fazer o procedimento de forma menos invasiva numa clínica particular. “Ele disse que ali daria para fazer, só que ficaria uma cicatriz enorme. E mandou ela para casa. Mas como a dor voltou, fomos para o hospital e eu falei que não importava a cicatriz, que eu queria a minha mãe viva”, relembra. Entretanto, não adiantou. Segundo a filha, Adriana estava com pedra na vesícula, indo para o pâncreas. A solução era a cirurgia. Antes que isso acontecesse, Adriana faleceu. Era 27 de fevereiro de 2012, e a causa da morte apontada pelo médico foi infarto agudo do miocárdio.
“Falaram que fizeram mais de 30 exames na minha mãe. Pedi para ver e não tinha. Não conseguiram comprovar”, conta Alexandra. Dentre as irregularidades já denunciadas, inclusive em reportagens do DIARINHO, está o superfaturamento de exames laboratoriais. Durante o depoimento na comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o hospital no período em que era administrado pela Cruz Vermelha, o farmacêutico bioquímico Renato Santângelo de Souza garantiu que a administração estava fraudando notas de exames, cobrando, por exemplo, a realização de quatro mil exames em um mês. Sendo que, segundo o especialista, não havia chances de terem sido feitos sequer 500 em 30 dias.
Alexandra não descansa enquanto não fizer justiça. Ela guarda cada papel. Ainda não procurou a polícia, nem o Ministério Público. Até então tinha se concentrado apenas em idas insistentes ao Ruth Cardoso atrás de respostas. “Da mesma forma que foi minha mãe, poderia ser qualquer um. E tiveram vários casos assim. Se não tem condições de atender, fecha”, sentencia. Mãe de duas filhas, ela diz que jamais vai levar outro parente para o hospital municipal de Balneário Camboriú. “Se depender de mim, ninguém da minha família coloca os pés lá!”, assegura.
Alexandra promete revelar a identidade do médico que ela responsabiliza pela morte da mãe. Quer que ele seja punido. A reportagem entrou em contato com o a delegacia de Itajaí do Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (Cremesc). Eles informaram que a atuação do departamento é mais voltada para a parte burocrática, mas enviaram os questionamentos para a gerência estadual do órgão, em Florianópolis, que ficou de responder. Contudo, até o fechamento desta reportagem, o Cremesc não se pronunciou oficialmente.

Morreu sentada na emergência


Foto: David T. Silva

“Não deu tempo de socorrer. Ela morreu sentada”

O aposentado José Fidélis da Silva viu a mulher com quem foi casado por 52 anos morrer numa cadeira de rodas esperando por atendimento na emergência do Ruth Cardoso. O tom de voz anestesiado pelos 74 anos de idade esconde a tristeza da viuvez. Ele não esquece o dia 11 de fevereiro de 2012 – o dia em que sua Carmem morreu. Numa pasta, guarda o atestado de óbito. Na cabeça, as recordações dos últimos suspiros da mulher.
Carmem Sales da Silva tinha 72 anos e sofria do coração. Passou mal e foi levada às pressas pela família até o Ruth Cardoso. Morreu sentada, aguardando atendimento. “Nós chegamos e colocaram ela numa cadeira de rodas na emergência. Ficou um tempo lá. Só quando deu uma parada cardíaca levaram para dentro, mas não deu tempo de socorrer. Ela morreu sentada”, relata. José diz que, pelo estado em que Carmem chegou, dava para ver que precisava ser atendida com urgência. “Podiam ter levado na hora para os aparelhos. Do jeito que ela estava mal, tinham de ter atendido no ato”, lamenta.
Ao contrário de muitos que ficaram traumatizados com o hospital por causa do mau atendimento, o aposentado não pode se dar ao luxo de negar um retorno à unidade onde viu a mulher morrer. Não tem plano e nem saúde de ferro. Adoentado, já tem consulta marcada com um cardiologista no Ruth Cardoso.


“O número de óbitos e realmente assustador”

Antes que houvesse a intervenção administrativa no hospital municipal Ruth Cardoso, o promotor de Justiça Rosan da Rocha instaurou inquérito para investigar o atendimento da unidade. Ele pede que qualquer pessoa que tenha se sentido lesada procure o Ministério Público Estadual.

DIARINHO – Qual o prazo para a conclusão do inquérito?
Rosan da Rocha
– O inquérito ainda está em andamento. O prazo para conclusão depende do tamanho do conteúdo das investigações, mas acredito que em três meses será finalizado.

DIARINHO – Quanto aos 176 óbitos registrados em seis meses, é um número normal? E as circunstâncias em que eles ocorreram, o senhor soube de casos em que tenha ocorrido falha do hospital?
Rosan
– O número de óbitos é realmente assustador, mas temos que saber as causas de cada um. É difícil tal verificação apenas por suposição. Nos casos em que houve reclamação de mau atendimento, está se averiguando, inclusive, com abertura de inquérito policial.

DIARINHO – Entre mortes fetais e de bebês recém-nascidos, foram 22 dos 760 partos realizados nestes seis meses. Há análise específica da maternidade do Ruth?
Rosan
– Quanto às mortes fetais e de recém-nascidos serão todas verificadas, posto que, em alguns casos, já se verificou possível imprudência e negligência médica.

DIARINHO – Há denúncias de médico que quis cobrar para fazer cirurgia, de gente que morreu numa cadeira de rodas esperando pelo atendimento, de gestante que teve um parto forçado e, por conta disso, usa fraldas até hoje, e até um caso em que o corpo do bebê que teria nascido morto desapareceu. O Ministério Público está ciente dessas denúncias? O que está sendo feito?
Rosan
– No que diz respeito à denúncia de cobrança para cirurgia, gente que morreu em cadeira de rodas esperando atendimento, gestante que usa fraldas por parto forçado, este Ministério Público não tem conhecimento. Mas iremos procurar maiores detalhes para que se possa realizar uma investigação aprofundada. No caso do feto que desapareceu, este sim, se tem conhecimento e será devidamente apurado.

DIARINHO – Nos casos de mau atendimento no Ruth Cardoso, há como separar as responsabilidades dos médicos, da Cruz Vermelha Brasileira e do município?
Rosan
– No caso de mau atendimento todos, indistintamente, dentro de suas responsabilidades, contribuíram para que tais fatos ocorressem.

DIARINHO – Até agora, algum indício de imprudência, imperícia e/ou negligência? Em que casos?
Rosan
– Há indício fortes de culpa, seja por imperícia, negligência ou imprudência, em alguns atendimentos realizados; os caso estão sendo verificados.


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Entenda o caso

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10/10/2011

• Inauguração do hospital municipal Ruth Cardoso. Durante a cerimônia, o então secretário de Saúde, José Roberto Spósito (PMDB), afirma que a expectativa inicial era de atender de 300 a 400 pessoas por mês.

21/03/2012
• A 6ª Promotoria de Justiça de Balneário Camboriú abre inquérito para apurar irregularidades no atendimento aos pacientes do Ruth Cardoso.

23/04/2012
• Respaldado por informações obtidas pelo Ministério Público, prefeito Edson Periquito (PMDB) assina o decreto de intervenção do hospital, tirando a Cruz Vermelha Brasileira do comando e assumindo a gestão da unidade.

24/04/2012
• Prefeito denuncia mau uso do dinheiro público – com pagamento de passagens aéreas e hospedagens – e decreta situação de emergência do Ruth Cardoso.
• Vereadores já tinham aprovado pedido de investigação do hospital.
Presidente da câmara, Orlando Angioletti (DEM), instaura a comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), presidida por Claudir Maciel (PSD) e tendo como relator Marcos Kurtz (PMDB). Os depoimentos começaram uma semana depois.
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O rombo pode ser maior do que se imaginava

Foto: Flávio Tin
 “O hospital está funcionando e estamos 
lutando para atender cada vez melhor as pessoas”

Tanto nas investigações dos auditores da prefeitura quanto na CPI e no inquérito instaurado pelo Ministério Público, não param de surgir suspeitas de desvios do dinheiro que era repassado dos cofres públicos para ser aplicado no hospital municipal Ruth Cardoso. Nada confirmado, justamente pela falta de documentos. Nem todos os papéis foram entregues pela Cruz Vermelha Brasileira – segundo os investigadores. Duas notas fiscais que confirmavam transferência de dinheiro da filial gaúcha da instituição, responsável por gerir o hospital, para o Maranhão, colocaram a administração municipal e vereadores em alerta. Somadas, as duas passam de R$ 1,3 milhão. Mas não há, ainda, a confirmação de que este valor foi realmente pago.
Além disso, no balancete de pagamentos consta a liberação de quase R$ 900 mil em único mês também para a filial do Maranhão. E ainda a transferência mensal de 7% dos R$ 1,7 milhão que a prefeitura pagava todos os meses para manter o hospital (o que equivale a mais de R$ 100 mil). Contudo, nestes casos em que o pagamento se confirma, faltam as notas fiscais. Por cautela, ninguém quer confirmar o rombo enquanto não tiverem acesso a toda documentação da prestação de contas do Ruth Cardoso. Sem a papelada, os vereadores, por exemplo, decidiram pedir a quebra do sigilo bancário da Cruz Vermelha para seguir o rastro do dinheiro.
Além disso, surgiu a suspeita de fraude no processo licitatório. Para uma empresa se habilitar e concorrer à gestão do Ruth Cardoso, uma das exigências era experiência em administração hospitalar de, no mínimo, cinco anos. Para conseguir confirmar isso, ao invés de apontar uma unidade que administrassem, a Cruz Vermelha gaúcha entregou um documento conjunto com as filiais de Santa Catarina e do Paraná alegando que, desde 1980, tinham um contrato de cooperação técnica na operacionalização do hospital da entidade, em Curitiba. Entretanto, o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) da filial do Rio Grande do Sul desmente o documento aceito pela prefeitura. A Cruz Vermelha gaúcha só foi fundada em 31 de março de 2005 – uma diferença de 25 anos.
Prefeitura investiga
Desde a intervenção, o prefeito Edson Periquito (PMDB) está decidido a romper o contrato com a Cruz Vermelha e providenciar um novo modelo de gestão para, então, reabrir o processo e contratar uma nova empresa. Para ter sustentação, ele colocou auditores para analisar a papelada do Ruth Cardoso e confirmar o rombo. E traz fatos novos. “Achamos uma nota de R$ 580 mil da compra de um programa de informática. E ninguém conhece esse sistema no hospital. Mas ainda não conseguimos confirmar o pagamento. É só mais um dentre os indícios que tomam forma todos os dias”, afirma. Apesar de estar investigando a questão financeira, Periquito garante que este não é o principal interesse da administração municipal.
“A constatação do desvio de dinheiro público eu coloco em segundo plano. Em primeiro lugar está, sem dúvida, o atendimento. O hospital está funcionando e estamos lutando para atender cada vez melhor as pessoas”, diz. O prefeito garante que não vai ignorar o que aconteceu nos leitos do Ruth da intervenção para trás. As vigilâncias Sanitária e Epidemiológica do município estão analisando os 176 óbitos, caso a caso. “A Sanitária vai verificar a questão dos equipamentos e da estrutura, já a Epidemiológica está concentrada nas causas das mortes. Procuramos identificar e, caso necessário, abriremos processo administrativo, comunicaremos ao conselho de Medicina e levaremos tudo ao Ministério Público”, garante.


Presidente da filial gaúcha da Cruz Vermelha Brasileira rompe o silêncio


À medida em que, após a intervenção, as denúncias surgiam, a voz da instituição responsável pela gestão do Ruth Cardoso minguava. Nício Brasil Lacorte, presidente da Cruz Vermelha Brasileira (CVB), filial do Rio Grande do Sul, disse que é um silêncio estratégico. Entretanto, decidiu falar para responder a algumas acusações e afirmar que pretendem “lavar o nome” da instituição. Não respondeu aos questionamentos relacionados aos óbitos e às denúncias de mau atendimento especificamente abordadas nesta reportagem, porque está aguardando as informações que serão fornecidas por um diretor clínico.

DIARINHO – Depois do decreto de intervenção do município, qual medida a Cruz Vermelha está tomando? Vão tentar retornar para o comando do hospital?
Nício Lacorte
– Nosso silêncio foi planejado e as medidas serão tomadas no momento adequado, exceto o Mandado de Segurança e o pedido de devolução dos computadores tomados na “mão grande”. Estes o juiz já mandou devolver. A nossa instituição não quer brigar por administração nenhuma, pois nossa missão é humanitária. O prefeito “rasgou” um contrato e nos fez acusações inverídicas, por óbvio vamos judicialmente mostrar a verdade. Se para “lavarmos nosso nome” for preciso retomar o contrato, o faremos, mas com esse prefeito não queremos ter mais relações negociais, por isso decidiremos o que fazer se a Justiça nos mandar retomar o trabalho

DIARINHO – Há denúncias de notas fiscais frias e de fraude no processo licitatório que concedeu o direito da Cruz Vermelha gaúcha administrar o Ruth Cardoso. O que há de verdade nestas denúncias?
Nício
– Não há notas frias e nem documentos falsos, isso são construções de políticos desonestos ou ignorantes sobre o que fazem (até agora fico com a última hipótese). Concorremos e fomos os únicos com toda a documentação correta. Nenhum dos outros concorrentes questionou suas exclusões. Da mesma forma que concorremos em Balneário, o fizemos em outros estados, ganhamos, e estamos administrando sem questionamentos. Para ter uma ideia de nossa boa intenção, fixamos um valor de administração de R$ 1,7 milhão por mês, quando poderíamos ter colocado R$ 3 milhões, pois éramos os únicos selecionados. Há um posto de Saúde aí que recebe R$ 300 mil por mês e tem o peso de um décimo do hospital. É só ver e comparar. Só que lá não tem divergência política, ainda, que eu saiba.

DIARINHO – Existem notas fiscais que mostram o envio de dinheiro para a Cruz Vermelha do Maranhão. Houve mesmo esta transferência do dinheiro? Qual a justificativa e qual foi esse valor precisamente?
Nício
– Para entender melhor os movimentos financeiros, explico: a CVB, diretoria nacional, foi quem concorreu à licitação (Cruz Vermelha só tem uma no Brasil). Para tanto, utilizou uma de suas filiais, a do Rio Grande do Sul, que, além de experiência comprovada na gestão de saúde pública, inclusive laureada pela realeza espanhola há dois anos, tinha todos os documentos exigidos. A diretoria nacional da CVB não tem atividade fim de execução, por isso usa as filiais. Como estava com poucos recursos, usou por empréstimo, para os levantamentos prévios sobre a situação do hospital e depois implantação para a execução do contrato, uma quantia de R$600 mil (mas o pedido inicial era de R$ 750 mil). Esse valor foi utilizado para diversos fins, todos voltados ao cumprimento do contrato, inclusive comprando bens que são de responsabilidade do contratante. Quando dos primeiros recebimentos, esse valor de R$ 600 mil foi remetido à CVB-MA e ela fez a emissão da nota comprobatória do recebimento. Tudo está claramente demonstrado nas prestações de contas, que foram aprovadas pelas comissões legais e pago pelo contratante. Não há nenhuma comprovação de remessa para a CVB-RS, os pagamentos de despesas de técnicos do Rio Grande do Sul que foram para o hospital na implantação tiveram custeio por essa verba. Tudo tem previsão contratual.

DIARINHO – Nos casos de mau atendimento no Ruth Cardoso, há como separar as responsabilidades dos médicos, da CBV e do município?
Nício
– No caso de mau atendimento é imediatamente apurado e são apontadas as causas e responsabilidades, que podem ser: dos médicos, no caso de dolo, negligência ou imprudência; do município, no caso de falta do cumprimento de suas obrigações contratuais; ou da CVB – e é possível sim definir claramente. Pode ainda ser dos três ou dos últimos dois, em concorrência. Afirmo, com absoluta segurança, pois conferi pessoalmente: todas as metas previstas no contrato foram cumpridas, mesmo sem que o hospital fosse entregue como pactuado. Somente as cirurgias eletivas não tiveram o número previsto, por falta de equipamentos e por excesso de necessidade de cirurgias urgentes (estas muito além do pactuado); temos arquivado no hospital as opiniões de muitos que foram atendidos, que preencheram formulário existente e disponibilizado a todos. Por estes, 82% disseram que o atendimento foi bom ou ótimo e 18% ruim ou péssimo. Ora, para um hospital em implantação, sem sua aparelhagem toda, com diversas deficiências de infraestrutura de responsabilidade do contratante (prefeitura), me parece excelente. Financeiramente o prefeito deixou de nos pagar, até maio, quando interveio, quase R$ 6 milhões, levando o contrato ao pé da letra. Esse valor será claramente demonstrado e cobrado. Também gostaria de dizer que a CVB, e em especial a filial do RS, preocupa-se sobremaneira com a transparência, por isso tudo o que é “jogado ao vento” por edis e pelo prefeito e sua turma de forma distorcida (por ignorância ou má-fé) é refletido na nossa contabilidade arquivada documentalmente no hospital, até sua intervenção.



Reportagem publicada no jornal Diário do Litoral - DIARINHO
Edição de 21 de maio de 2012