quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Reportagem Especial de Abu Dhabi



Uma ilha de progresso rodeada por um mar de velhos costumes

A geografia não é a maior distância entre Itajaí e Abu Dhabi. Estar no calendário de paradas da Volvo Ocean Race é um dos poucos pontos em comum entre as duas cidades. Reportagem do DIARINHO desbrava a capital dos Emirados Árabes e conta o que viu e sentiu do outro lado do mapa



Texto e fotos: Cláudio Eduardo

Abu Dhabi é um emaranhado de cartões-postais. Para cada canto que se olha, há algo surpreendentemente lindo – ao menos no prisma de um ocidental. Na capital dos Emirados Árabes, as construções antigas convivem em harmonia com os gigantescos prédios de arquitetura arrojada. Tudo parece ser projetado numa precisão atípica para alguém acostumado com os cenários brasileiros onde hoje uma rua vai para um lado e no dia seguinte, sem explicações, muda de sentido. Em Abu Dhabi não há remendos. Em alguns locais não é exagero afirmar: é uma maquete futurista em tamanho real.
É a primeira vez que Abu Dhabi recebe uma etapa da Volvo Ocean Race. Contudo, a regata de volta ao mundo não é o único investimento da cidade em eventos esportivos de alto nível. Muita gente não se recorda, mas já deve ter ouvido falar o nome da capital árabe. Em 2009, por exemplo, foi palco do último grande prêmio de Fórmula 1, onde o alemão Sebastian Vettel se sagrou o mais jovem campeão mundial na história da prova. Também foi em Abu Dhabi que o Internacional decepcionou os torcedores colorados ao ser eliminado do campeonato mundial de Clubes da Fifa. A derrota por dois a zero foi para o Mazembe, um desconhecido time do Congo.
E não é só no mundo dos esportes que Abu Dhabi luta para atrair os holofotes. A cidade que é impulsionada pelo mar de dinheiro do petróleo busca se tornar um centro para turistas de todos os lugares do planeta. O cenário é realmente perfeito. Enche os olhos. E a infraestrutura corresponde. Dificilmente um turista – mesmo que não fale o inglês, que substitui o idioma árabe na hora da conversa com pessoas de outros países – passa dificuldades para se locomover pela cidade.
Com dinheiro e boa vontade, até apelar para coisas artificiais é válido. Apesar do clima desértico, Abu Dhabi tenta se tornar a localidade mais verde do Golfo Pérsico. E quem vê confirma: estão conseguindo transformar o visual arenoso em arborizado. Exportam plantas, flores e gramados de tudo quanto é país e para que o verde não morra com o calor forte – que geralmente só alivia um mês a cada ano – eles usam da tecnologia. Um complexo sistema puxa a água do mar e faz o processo de dessalinização antes de usá-la para regar as plantas.

TRADIÇÃO
Mulheres se cobrem da cabeça aos pés para poder sair de casa



Antes de embarcar para Abu Dhabi, recebo instruções: nada de encarar as mulheres, fazer comentários próximo a elas ou sequer fotografá-las. São intocáveis. Esse alerta se tornou um receio ainda maior quando chego à cidade e percebo que outros homens que não são nativos têm o mesmo temor. Não quero deixar brecha para problemas numa terra em que as tradições se sobrepõem a qualquer preceito jurídico aos quais nós ocidentais estamos acostumados.
Elas parecem fantasmas. Desviam olhares, abaixam a cabeça e parecem infelizes pela aparente submissão. Aos poucos, percebo que meu conceito está errado. Numa conversa com um taxista do Paquistão, pergunto sobre as mulheres dos árabes. Ele ri quando percebe resquícios de compaixão no meu olhar. Garante que elas quem mandam em casa. Depois disso paro para observar e percebo que, realmente, as mulheres parecem satisfeitas.
Pelo principal shopping de Abu Dhabi, o Marina Mall, circulam cheias de orgulho, entrando de loja em loja para esbanjar o poder financeiro. Pelas ruas, vira e mexe as burcas pretas se destacam nos cenários estupidamente claros devido às condições climáticas da região. Não satisfeitas, há mulheres que radicalizam. Escondem até o rosto atrás do pano escuro, deixando de fora apenas os olhos. Outras ostentam. Andam todas faceiras com uma burca tão negra quanto a das demais, só que cheia de pedras bordadas. Em Abu Dhabi parece lei: nativos precisam exibir suas riquezas.

PROCURA DA FELICIDADE
Brasileiros vão para Abu Dhabi em busca de mais qualidade de vida



Conheço Solange por acaso. No meio de uma multidão de turistas, ela identifica minha nacionalidade. E a conversa começa. Fui conhecer um dos principais pontos turísticos de Abu Dhabi, a majestosa “Sheikh Zayed Mosque” – uma das maiores mesquitas do mundo. Despreparado, chego de bermuda. Preciso colocar um roupão branco para poder entrar no prédio. Como traços europeus passam longe da minha aparência, acho que vou ser facilmente confundido com um árabe. O disfarce não durou muito tempo.
“É brasileiro?”, diz a voz, num carregado sotaque carioca, ecoando no interior da mesquita. Me viro e vejo uma jovem senhora vestindo a burca preta conforme os seguranças obrigam as mulheres que queiram entrar na igreja muçulmana. Começa o bate-papo. “Que bom ouvir o nosso bom português em terras estrangeiras”, penso.
Solange Barros tem 57 anos. Desde 2006 largou o Rio de Janeiro para morar nos Emirados Árabes. Ela sentiu o impacto da mudança, mas não se arrependeu. “Meu marido era piloto da Varig. E viemos para cá porque ele começou a trabalhar na Emirates Airlines [uma das maiores empresas aéreas do mundo]. Só aqui conseguimos a tão sonhada estabilidade financeira”, conta. Enquanto o marido sobrevoa, a carioca ocupa os dias como guia turística. E era justamente isso que ela estava fazendo na mesquita: apresentando o lugar a um casal de visitantes. Mesmo assim, não se fez de rogada para conceder uma “conversa-entrevista”.
Só um dos dois filhos de Solange veio para Abu Dhabi, o caçula. O outro, já com 35 anos, continua em terras brasileiras. Ela se diz ainda mais tranquila por trazer o filho de 16 anos para morar numa cidade completamente oposta ao Rio de Janeiro. “O maior impacto que senti desde que cheguei aqui foi a questão da segurança, que é máxima em qualquer horário. Você sabe que pode deixar um objeto destrancado, andar tranquilamente com uma joia cara ou até mesmo deixar o vidro do carro aberto. Aqui ninguém vai te roubar. Agora experimenta fazer isso no Brasil”, provoca.
A guia turística garante que as condições de vida estão melhores para ela e para a família. “O salário não é dos maiores, mas o pacote vale a pena. Você tem todo tipo de assistência. Além de mim, existem pelo menos mais 100 famílias de pilotos brasileiros vivendo aqui”, comenta Solange. Ela diz que há demanda: são 17 vôos diários com destino aos Emirados Árabes e na semana que vem a Emirates lança mais uma conexão, justamente para o Rio de Janeiro. E Solange vai estar entre as primeiras a embarcar. Vem para o Brasil matar a saudade dos que ficaram para trás.
Na mesquita, ela usa a burca preta, mas não por ter se rendido às tradições locais. Apenas por ser obrigatório para as visitantes. Apesar de parecer óbvio a rejeição às mulheres estrangeiras que se instalam no território das árabes, Solange nunca se sentiu desrespeitada. “Nós somos a maioria. Os nativos são minoria, representam apenas 11% da população. Bem menos que os indianos, que são 40%”, exemplifica.

Foto: Gabriela Bepler

Mão de obra estrangeira
Essa desproporcionalidade na população destacada por Solange é facilmente visível. Chama a atenção de quem passa por Abu Dhabi: nativos não trabalham na prestação de serviços. Enquanto os árabes esbanjam os bens adquiridos com o petróleo e transbordam a empáfia típica de milionários emergentes, imigrantes fazem o trabalho braçal.
De todas as vezes que entrei num táxi, nunca o motorista era nativo – um era do Paquistão, deixou a família lá e veio tentar juntar dinheiro, mas ainda não conseguiu trazer a mulher e filhos para Abu Dhabi; outro era de Bangladesh, e pouco descubro, pois ele é dos que prefere dirigir calado; um terceiro, de Filipinas, com inglês não tão treinado ao ponto de me contar o motivo que o trouxe para a capital dos Emirados. E o exemplo dos táxis vale para garçons, vendedores, operários... No trabalho percebe-se muitos orientais de olhos puxados e praticamente nenhum de burca. As nativas parecem ter apenas duas tarefas: se dedicarem aos maridos e se exibirem da forma menos provável, escondidas atrás de metros de pano.

CENSURA
Segurança proíbe fotografia de mulher sem burca no lado de fora da mesquita

Foto: Diego Gomes

Mulheres não precisam estar dentro do templo islã para serem obrigadas a seguir as tradições. Mesmo do lado de fora, não pode fotografá-las caso estejam vestindo “roupas ocidentais”. A mesquita só pode dividir o mesmo espaço na foto com uma mulher caso ela esteja com a veste negra escondendo até o último fiapo de cabelo.
E eu sabia disso. Confesso. Mesmo assim, atendo ao pedido de uma jornalista que visitava a “Sheikh Zayed Mosque”. Ela senta na beira de uma espécie de piscina, na frente da mesquita, e me pede para bater uma foto. Minha missão é ser discreto. Não posso deixar que os seguranças (que não são poucos!) percebam que estava burlando a regra. Ninguém parecia estar me olhando. Ela sorri, eu clico. Imagem capturada. Finjo que nada aconteceu, mas não vou muito longe.
Mal dei três passos e ouço, num inglês carregado, os gritos de “por favor, senhor!”. Paro e ouço o que o segurança, que vem apressado em minha direção, tem a falar. “Posso ver a última foto?”, me questiona fazendo cara de poucos amigos. Não me deixa saída. Mostro a última imagem da câmera e lá está o registro de uma mulher, de calça jeans e camiseta, posando sorridente na frente da mesquita. Prevejo o problema, mas não dimensiono as conseqüências.
Olhando para a foto, o árabe – tão franzino quanto eu – ordena que eu a apague. Nem penso em contrariá-lo. Não queria saber qual seria a outra opção, caso eu ignorasse a ordem. Apago. Ele acompanha cada botão que eu aperto e olha pelo monitor da câmera até a foto se dissipar. E me dá as costas. Depois percebo que, mesmo de longe, o mesmo segurança vigia cada passo meu ao redor da mesquita. Até que vou embora. Continuo meu passeio turístico e as belezas da cidade me fazem esquecer da situação constrangedora.


Reportagem publicada no jornal DIARINHO em 16 de janeiro de 2012

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

CRÔNICA DE ABU DHABI


Os primeiros dias de um repórter na fascinante capital dos Emirados Árabes

Por Cláudio Eduardo

Foto na "Sheikh Zayed Mosque", em Abu Dhabi. Crédito: Gabriela Bepler

 
O cansaço da viagem longa e da troca de fuso ainda não foi superado. Faz quatro dias que saí de Itajaí – sendo que dois ficaram enterrados entre espera em aeroporto e vôos que pareciam eternos. Perco o maior tempo no trajeto entre Florianópolis e Doha, capital do Qatar, cruzando o continente africano depois de deixar para trás o oceano Atlântico e, por fim, sobrevoando o Oriente Médio após a travessia aérea sobre o lendário Mar Vermelho.
O relógio enlouquece. Eu não. Depois de instalado em Abu Dhabi, começa a peregrinação. O sono não vem, a fome se foi, mas nada disso aplaca a vontade de conhecer cada canto possível da capital dos Emirados Árabes. No primeiro dia em que estou na cidade, parto para a vila da regata Volvo Ocean Race. No caminho, um mundaréu de prédios inacreditavelmente arrojados. Mas as edificações mais antigas permanecem preservadas entre as novas construções. Não há como recusar uma foto. Só olhar é pouco. Tudo vira cartão-postal nos meus olhos, então preciso registrar.
E com essa curiosidade típica de qualquer jornalista, somado ao espírito de turista que me permito nessa viagem (tão longa!), desbravo os principais pontos turísticos de Abu Dhabi. Dentre as tantas construções, a “Sheikh Zayed Mosque” – uma das maiores mesquitas do mundo e a mais importante da capital árabe – enche meus olhos... E a memória da minha câmera. Registro cada passo. E toda essa experiência está sendo cautelosamente armazenada para servir de material para a reportagem especial que sai na segunda-feira, nas páginas do DIARINHO, agora mais internacionais do que nunca.

(Texto publicado no jornal DIARINHO em 13/01/2012)