quarta-feira, 25 de abril de 2012

Guerreiros do mar - histórias de sobrevivência no oceano


GUERREIROS DO MAR
Histórias de sobrevivência no oceano
Velejadores da Volvo Ocean Race encaram as dificuldades em alto-mar durante a competição. Mas, além dos atletas, a fúria das marés já deixou muitos pescadores de Itajaí de frente com a morte

Por Cláudio Eduardo
claudio@diarinho.com.br

Os diários de bordo dos velejadores que participam da Volvo Ocean Race podem impressionar. Eles passam por maus bocados em alto-mar. Mas, sem a mesma celebração recebida pelos atletas, muitos pescadores têm no oceano a sobrevivência. E é lá também que esbarram com os perigos e, não raro, se deparam com a morte. Hoje Itajaí se abre para a vela internacional ao sediar a única parada da Fórmula 1 dos mares na América Latina. Contudo, muito antes disso, é uma cidade que vive da água – seja pelo transporte, alavancado pela movimentação de contêineres no Porto, ou pela pesca. Não por acaso os nativos recebem o título de peixeiros.

 Fotos: David T. Silva
Eros trocou as redes de pesca pela burocracia de um sindicato. Há quatro meses, resolveu mergulhar de cabeça nos papéis e largar, mesmo que temporariamente, os riscos que enfrentou nos últimos 20 anos como pescador profissional. O pai também era do ramo. Outros cinco irmãos viviam da mesma atividade. Mas Eros Aristeu Martins, hoje com 53 anos, teimou em ficar longe do oceano. Somente depois dos 30, assumiu a profissão que foi hereditária até a geração dele. “Comecei tarde porque me dediquei aos estudos. Sempre ouvia minha mãe pedindo para eu não seguir os passos do meu pai, que pescou dos 13 aos 60 anos. Mas não teve jeito. Meus irmãos diziam que era uma carreira promissora, aí resolvi entrar”, conta. Casado e pai de três filhos, Eros reforça que nenhum deles é pescador.
Apesar de estar temporariamente afastado do mar e não ter a certeza se volta para o ofício, Eros não consegue se desvincular do cotidiano dos pescadores. Vira e mexe, recorda das aflições que sentiu a milhas de distância de casa. Quando comparado aos atletas da Volvo Ocean Race, reconhece as dificuldades que eles encaram na competição. Entretanto, sabe exatamente onde está a diferença entre os velejadores e os profissionais da pesca. “Eles têm todo suporte necessário. Eu costumo dizer que não existe acidente leve em barco. Tudo é grave. Só que se o pescador tivesse a estrutura que os velejadores têm, não morreria nenhum. Às vezes o socorro para um pescador demora até 24 horas”, ressalta.
Pela mesma água que, idas após idas, Eros trouxe o ganha-pão, viu companheiros não voltarem. “Mesmo antes de ser pescador, eu já tinha perdido amigos. Teve um que caiu na água e até hoje não encontraram o corpo. Nesse caso é triste porque a família ainda tem esperança que ele esteja bem em algum lugar”, relata, crente de que o amigo realmente não conseguiu escapar da fúria das marés. Em outra situação, dessa vez mais recente, um simples acidente foi fatal. “Há dois anos o chumbo trancou na mão e ele foi para a água junto com a ponta da rede. Puxaram de volta, mas a rede veio vazia. E não acharam mais”, lamenta.
Poderia ter sido ele...
No emaranhado de memórias, uma lembrança se destaca dentre as histórias de luta em alto-mar. Era meados da década de 1990. Num barco com 16 tripulantes, Eros trabalhava como segundo motorista – um posto que, na aeronáutica, se equivale ao co-piloto – e depois de uma pescaria acertada, que rendeu 14 toneladas de sardinha, estava pronto para retornar para terra-firme. Os peixes estavam no porão. Ele lembra que começava um vento sul, que é respeitado por todo pecador. E foi quando um bote da traineira (embarcação da modalidade do cerco) bateu sem que ninguém notasse a avaria. A essa altura, a “Primavera 16” estava a 45 metros de profundidade, num extremo entre os estados de Santa Catarina e Paraná. “Todos foram dormir. Só eu e outros dois tripulantes ficamos acordados. Quando o mestre do barco acordou, lá pelas 6h, duas horas depois que começamos a viagem de volta pra costa, ele notou que o fundo da embarcação tava muito enterrado na água e disse que não tínhamos peixe para esse peso todo”, narra.
Neste momento, o “Primavera 16” já estava próximo das águas do município de Penha, a cerca de 25 metros de profundidade. “Ele ligou para a firma e deu as duas opções que a gente tinha: ir em direção a costa para que o barco encalhasse na praia, ou tentar chegar até Itajaí para atracar, mesmo sabendo que não daria tempo e que iria afundar quando a gente tivesse chegando em Navegantes”.
Escolheram a primeira opção. Caso contrário, Eros acredita que não teria chance de sobreviver. “Ainda bem que encalhou na praia da Armação. Se afundasse antes, eu estaria perdido. Quando começou o desespero em alto-mar, a primeira coisa que fiz foi me abraçar a um colete salva-vidas, porque eu nado muito mal”, revela. Mesmo depois do susto, três dias depois, o barco foi arrumado e eles voltaram para o oceano.
“A gente passa a ter mais cuidado depois que vive uma coisa assim, mas ter medo, não. O pescador, geralmente, só sabe fazer aquilo ali. Por isso está neste trabalho, porque precisa sobreviver. E passa a ser a vida dele. Dependendo do tipo de modalidade de pesca, ficamos 25 dias num barco e cinco dias em casa”. E seguem na luta, mesmo sem as glórias de um atleta. Morador de Itajaí desde os oito anos, Eros sempre passou pelo rio Itajaí-açu antes de encarar os mares. No entanto, nunca foi recebido com honrarias. E nem queria. Entrava no barco apenas para sobreviver.

Palavra de um pescador: “só continuo porque preciso”

Dos 54 anos de vida, Servásio Cardoso Filho, o Vavá, dedicou 39 à pesca. Viu tempestades, ondas gigantes, mas nunca vai esquecer o dia em que o barco que ele comandava foi ao fundo. Era 1994. A embarcação que Vavá dividia com outros dois tripulantes ia em socorro de outra que estava com dificuldades em alto-mar. Eles levavam tambores para que o outro barco pudesse boiar até chegar em terra-firme. Lá pelas 7h, o mestre passou pela cozinha e percebeu que a água estava subindo. Foi tudo muito rápido. “Não dá nem para explicar. Eu passei pela cozinha e estava tudo legal, logo que voltei vi que tava entrando muita água”, recorda Vavá.
Na época, a embarcação não tinha sequer colete salva-vidas. O pescador conta que foi com o barco em direção à costa, mesmo ciente que não daria tempo para atracarem antes do naufrágio. “Antes que fosse ao fundo, eu fiz sinal para um barco que vinha de longe, na esperança que eles viessem nos socorrer. O nosso afundou, o cozinheiro segurou num colchão e o motorista e eu ficamos boiando. Até que chegou o socorro. Levamos sorte, mas nunca vou esquecer daquele dia!”, jura Vavá.
Ele confessa que já pensou em desistir da carreira. No entanto, sabe que é do mar que tira o sustento. “Só continuo porque preciso. Não é um trabalho fácil. Tem dias que nem saio de casa, quase morro de dor”, reclama, enquanto se prepara para a próxima viagem.

UM SOBREVIVENTE
Gervásio viu cinco companheiros de tripulação serem engolidos pelo mar
No naufrágio que resultou na morte da maioria dos tripulantes, o pescador aposentado foi um dos quatro que ficou para contar a história
Aos 74 anos, o mar ficou apenas na lembrança do pescador aposentado Gervásio Manoel Laurenço. E as recordações não são as melhores. Dentre os tantos momentos difíceis que passou no oceano, nenhum se compara a vez em que viu mais da metade dos companheiros de tripulação serem engolidos pelas águas turbulentas do Atlântico. Dos nove pescadores que estavam a bordo, apenas Gervásio e outros três sobreviveram.
Tudo aconteceu há três décadas, quando trabalhava em uma empresa pesqueira de Santos (SP). Ele recorda que o tempo estava fechado, mesmo assim o mestre da embarcação resolveu que eles encarariam o mar. “Eu falei para ele que devia ao menos apagar as luzes, senão não conseguiríamos enxergar alguma laje em alto-mar. Ele me disse que eu não mandava em nada”, conta. A postura do comandante do barco custou caro. Na escuridão da madrugada, colidiram com um pedregulho.
Gervásio trabalhava na modalidade de pesca parelha – quando é preciso dois barcos para puxar a rede e capturar os peixes. No momento da colisão, o outro não estava por perto. Eles já retornavam para terra-firme, mas ainda afastados da costa. “Tinha muita chuva e muito vento forte. Nós vínhamos na frente. Quando o barco bateu, ficou em cima da pedra”. O mestre e outro tripulante decidiram nadar em busca de abrigo na outra embarcação que deveria estar a caminho. Os outros sete ficaram agarrados na pedra, protegidos, mesmo que parcialmente, pelo barco suspenso.
“Descemos por um cabo e ficamos lá das 21h até a meia-noite. Eu cheguei a pegar meus documentos de pesca e algumas roupas. Mas quando desci já vi que não tinha salvação. O mar tava ficando cada vez mais grosso”, lembra. Na agitação das ondas, o barco foi arrancado de cima do pedregulho e afundou. Com isso, os sete pescadores ficaram mais vulneráveis à fúria da maré. “A embarcação nos protegia. Depois que afundou, veio uma onda grande e assim que passou pela pedra lançou cada um para um lado”, recorda.
Foi neste momento que Gervásio e outro colega de trabalho perderam os demais de vista. Começaram a nadar e, depois de uma hora, foram socorridos, levados para um hospital em Santos. Estavam todos machucados pelo atrito com o pedregulho. Entretanto, o instinto de sobrevivência superava qualquer dor. Eles se salvaram.
Mas nem havia o que comemorar. Os outros cinco não conseguiram resistir ao mar agitado. Gervásio não esquece sequer o lugar de onde cada um deles vinha: dois de Navegantes, um de Porto Belo, um de São Paulo e outro de Penha. “Os socorristas deram voltas por aqueles lados e não acharam ninguém. Todos os outros corpos foram encontrados, aos poucos. Menos o de Porto Belo, que era meu primo”, relata o pescador aposentado. Ele lembra que as águas estavam muito agitadas. Nem mesmo o mais habilidoso dos nadadores entre os tripulantes conseguiu sobreviver. “Meu primo nadava igual um peixe. Provavelmente deve ter batido com a cabeça na pedra ou algo assim. Nunca vamos saber”.
Tragédia (quase) anunciada
Não bastasse a teimosia do mestre da embarcação antes de irem para alto-mar, Gervásio conta que uns 20 dias antes do naufrágio o mesmo barco afundou. Alguém deve ter deixado semi-aberta a bomba – por onde entra água – e ninguém percebeu que, aos poucos, mesmo atracada, a embarcação ia para o fundo. “Eu estava sozinho, quando alguém gritou, cheguei a cortar o cabo e deixar descer. Voltamos para casa até que eles subissem o barco e arrumassem”. Feito isso, embarcaram para a trágica pescaria.
Mesmo depois do naufrágio que resultou na morte de cinco tripulantes, Gervásio diz que não podia desistir da profissão. Contudo, para enterrar (ou aliviar) as más lembranças, trocou de empresa. Veio trabalhar numa pesqueira do Sul. “Já passei por muitas coisas ruins. Dava medo na hora, chegava a dizer que não voltaria, mas depois ia de novo”, confessa.
Apesar de ressaltar os perigos, ele acredita que as tecnologias aliviaram o trabalho em alto-mar. Na época dele, todo o processo de pesca era feito na mão, sem nenhum outro recurso que não fosse a força. “Passei muito sacrifício. Embarcado fiquei muitas vezes sem dormir, passei fome... Vi a morte de perto!”, conclui, com a voz embargada, inundada em recordações que, talvez, preferia ter esquecido num mar qualquer.

Sofrimento para quem fica em terra-firme

Nos 48 anos de casada com Gervásio, dona Mariquinha – ou Maria Adelina Laurenço, como a certidão de nascimento teima em nominá-la – passou por momentos de desespero. Na vez em que houve o naufrágio e que o marido ficou um mês internado em outro estado, sequer pôde ir visitá-lo. “Minha filha mais velha estava para morrer de sarampo. E ele lá. Queria, mas não tinha como deixar a menina para ir ver ele”, desabafa a aposentada de 70 anos.
Cada vez que Gervário vinha para casa, ela não fazia questão de mudar a ladainha. “Eu não queria mais deixar ele voltar. Insistia, mas como não tinha jeito de fazer mudar de ideia eu só dizia para ele ir com Deus”, salienta Mariquinha. O casal teve quatro filhas e, hoje, 11 netos. “Ainda bem que só tive mulheres. Não fiz nenhum homem que pudesse ir para a pesca”, comenta Gervásio, em tom de alívio por não passar pela mesma angústia que a família vivia enquanto ele navegava.
“Quando via que ia chover, eu ficava pendurada na janela, junto com as pequenas, rezando por ele”, conta Mariquinha. Fora o naufrágio, ela também lembra de uma vez em que viveram momentos de terror. Dessa vez, a tragédia foi em terra – mas o patriarca estava em alto-mar. “Eu estava embarcado, quando recebi o chamado de que a casa, que eu tinha passado tanto trabalho para construir, tinha sido destruída num incêndio. Pedi para voltar. Isso faz uns 38 anos. Foi por causa de um curto-circuito. Queimou tudo e, por pouco, minha filha que tava dentro de casa não morreu também”, desabafa o pescador.
Gervásio diz que assim que viu o estrago, não sabia o que ia fazer da vida. Depois disso, desistiu do terreno. Não queria olhar para nada que o lembrasse da perda. Comprou um terreno no bairro São João, em Itajaí, onde vive até hoje. Depois de 15 dias do incêndio, voltou para as águas do Atlântico para, da mesma forma que fizera antes, construir o patrimônio da família. “Decidi que ia recomeçar. E fui. O fogo me fechou uma porta, mas Deus abriu muitas outras”, finaliza, orgulhoso da vida calma que leva hoje, ao lado de dona Mariquinha, das filhas e rodeado pelos netos. Transformou as tristezas em histórias. E virou a página.