domingo, 24 de junho de 2012

O HOSPITAL RUTH CARDOSO NA UTI (3)


Desvio de dinheiro público passa de R$ 3 milhões




Todas as informações escondidas pela falta de notas fiscais e comprovantes de pagamento se revelam na movimentação financeira da conta bancária da Cruz Vermelha Brasileira, filial do Rio Grande do Sul. O destino do dinheiro repassado pela prefeitura para ser aplicado no hospital municipal Ruth Cardoso teve rumos bem distantes de Balneário Camboriú. Dos mais de R$ 12 milhões pagos pelos cofres públicos, 25% foram desviados para uma segunda conta da entidade e quase R$ 1,5 milhão transferido para o Maranhão

Por Cláudio Eduardo

A quebra do sigilo bancário da Cruz Vermelha gaúcha, concedida pela Justiça, revela o descalabro com o dinheiro público. A prefeitura de Balneário Camboriú fazia o repasse para uma conta da entidade, mas, na sequência, parte era transferida para outra conta – na mesma agência da Caixa Econômica Federal. Depois começava a distribuição não justificada. Entre a Cruz Vermelha do Maranhão e empresas do estado nordestino, foram enviados R$ 1.455.806,98 (mais de 10% do valor destinado pelo município para ser aplicado no hospital). Tudo de forma irregular, em desacordo com o contrato de gestão firmado entre a entidade e a administração municipal ao conceder a gestão do Ruth Cardoso.
Em 10 de outubro do ano passado, o hospital abriu as portas. Entretanto, 40 dias antes da cerimônia de inauguração, o Fundo Municipal de Saúde liberou o primeiro recurso para a Cruz Vermelha, uma forma de adiantamento ao repasse mensal de R$ 1,7 milhão acordado. O depósito de R$ 600 mil na conta 3.947-2 foi efetuado em 30 de agosto. No mesmo dia, R$ 120 mil foram parar na outra conta, a 3.946-4, e logo foram distribuídos: R$ 40 mil para o Centro de Ensino e Desenvolvimento Profissional (Cedep), empresa que fica no mesmo endereço da Cruz Vermelha do Maranhão; o resto serviu para o pagamento de uma caminhonete Chevrolet S10. Foi a primeira aquisição do hospital. Contudo, o veículo nunca apareceu em Balneário Camboriú.
No fim do mês passado, durante depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga as irregularidades na administração do Ruth Cardoso, Anderson Marcelo Choucino, ex-presidente da Cruz Vermelha nacional e que hoje se intitula consultor voluntário da entidade gaúcha, negou a existência de uma segunda conta bancária em Balneário. Quanto à remessa para o Maranhão, Anderson Marcelo garantiu ter sido para pagar um empréstimo entre filiais e que a verba foi usada nas despesas que a entidade do Rio Grande do Sul teve durante o processo licitatório.
Rafael Schroeder, atual secretário de Saúde, que também é o gestor do fundo responsável pela liberação dos recursos, rechaça a transferência de dinheiro do hospital para o nordeste. “Não existe previsão legal para nenhum tipo de repasse. Da mesma forma que nós desconhecíamos a existência de outra conta. Só repassávamos para uma conta corrente que deveria ser exclusiva”, afirma.
No dia seguinte à intervenção que tirou a Cruz Vermelha do comando do Ruth Cardoso, todo o dinheiro que a entidade ainda tinha na conta corrente teve a destinação rotineira, confirmada pelos dados da movimentação bancária: foi enviado para a outra conta da entidade e imediatamente transferido para uma empresa. do Maranhão.
Investigações do município
Há dois meses, desde que foi decretada a intervenção municipal, a prefeitura busca provas das irregularidades para rescindir o contrato de gestão com a Cruz Vermelha. Para isso, fez uma auditoria que foi recém concluída. Dentre os elementos apontados, um trata do envio de repasse para a Access Soluções – empresa do Maranhão que recebeu R$ 90 mil uma semana antes da intervenção. Os auditores ouviram o responsável pelo departamento de Direção Financeira do Ruth Cardoso, Wilalba Henrique Clivati, que é primo de Anderson Marcelo. Ele alegou ser o único a movimentar a conta corrente do hospital e afirmou desconhecer o repasse financeiro para a Access. Entretanto, é o sócio-proprietário da tal empresa maranhense.
Os auditores do município também listaram os títulos protestados contra a Cruz Vermelha que, somados, chegam a R$ 232.693,71. E, fora as dívidas, outra irregularidade: a compra de produtos que não foram incorporados ao patrimônio público do município. Entre equipamentos hospitalares e eletrônicos, o gasto chega a R$ 1.227.815,98. De acordo com Rafael Schroeder, a diretoria municipal de Patrimônio deve, nos próximos dias, ir até o Ruth Cardoso para confirmar se os produtos estão na unidade ou se foram desviados.


Esquema deixa brechas para ação criminal

O advogado Natan Ben-Hur Braga, especialista em Direito Administrativo, acredita que, considerando as provas apontadas pela auditoria da prefeitura de Balneário Camboriú, o município não terá dificuldades em rescindir o contrato de gestão que firmou com a Cruz Vermelha Brasileira do Rio Grande Sul. “Se o edital exige que a entidade tenha uma conta corrente exclusiva e eles descumpriram, já é algo grave e que sustenta a quebra de contrato, da mesma forma que o fato de ter títulos protestados”, argumenta.
Para que isso aconteça, Natan explica que é preciso que a prefeitura abra um processo administrativo e, conforme determina a lei, respeite o princípio de ampla defesa. De acordo com o secretário municipal de Saúde, Rafael Schroeder, é exatamente este o procedimento adotado: com a conclusão do relatório da auditoria, eles aguardam a justificativa da entidade antes de darem sequência ao processo administrativo. Enquanto isso, a prefeitura adiou por mais 30 dias o decreto de intervenção.
O especialista em Direito Administrativo explica que, pelo que observou nos documentos, é possível que o caso seja tratado na área Penal. “Todos os gastos que não puderam ser justificados como gastos para o hospital, os operadores do dinheiro respondem por peculato. É apropriação indébita do dinheiro público”, salienta Natan. No caso do carro Chevrolet S10, por exemplo, ele também inclui na lista de apropriação indébita e diz que é necessário haver a busca e apreensão do veículo até que saia a decisão final da Justiça. E não para por aí. “Comprovado o dolo de mais de três pessoas em fraudar, é possível se enquadrar também por formação de quadrilha”, comenta o advogado.
Várias ações da entidade no comando do Ruth Cardoso se encaixam como improbidade administrativa, segundo o especialista. E, no caso de uma condenação, a Cruz Vermelha gaúcha pode, inclusive, perder por um período determinado o direito de contratar com o poder público. Além do ressarcimento aos cofres públicos. Há um mês, a Promotoria da Moralidade Administrativa de Balneário Camboriú abriu um inquérito para avaliar se houve improbidade (tanto por parte da entidade quanto do município). Ainda não concluiu a investigação.

• PECULATO
Pena: reclusão de dois a 12 anos e multa
• EXTRAVIO OU SONEGAÇÃO DE LIVRO OU DOCUMENTO
Pena: reclusão de um a quatro anos
• APLICAÇÃO DO DINHEIRO PÚBLICO DIFERENTE DA LEI
Pena: detenção de um a três meses e multa
• FORMAÇÃO DE QUADRILHA
Pena: reclusão de um a três anos
• IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (EM VÁRIOS ARTIGOS)
Pena: perda dos bens, ressarcimento, pagamento de multa de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o poder público.

Algumas irregularidades apontadas pelos auditores

• Utilização de recursos públicos para o pagamento de passagens aéreas, alimentação, táxi e hospedagem. Em alguns casos, as notas fiscais confirmam o consumo de pratos sofisticados, fora outras notas de restaurantes luxuosos de Jurerê Internacional, em Florianópolis;

• Contratação irregular de profissionais autônomos, como, por exemplo, um assador de chester;

• Compra de uma fragmentadora de papel, em caráter de urgência, no dia 13 de abril deste ano. O equipamento foi localizado no departamento financeiro do hospital e, na justificativa informada na solicitação de compras, consta: “para destruir documentos confidenciais”;

• Documentos fiscais em branco, localizados no departamento financeiro do Ruth Cardoso, que poderiam ser preenchidos nos termos e valores que bem entendessem;

• Pagamento de amostra grátis confirmado pelos comprovantes no valor total de R$ 6,9 mil;

• Pagamento do seguro de um Chevrolet S10, no valor de R$ 1.508,72. Pelo boleto, o carro estaria no nome de Luis Fernando Motta Rodrigues, que tem como endereço o mesmo da Cruz Vermelha Brasileira no Rio de Janeiro;

• Contratação de duas empresas diferentes com o mesmo objetivo: fornecer o sistema de informatização do hospital. Em 24 de janeiro deste ano, a Cruz Vermelha assinou o contrato para cessão do programa no valor de R$ 372 mil com a empresa Wheb Sistemas, apesar de dias antes ter comunicado, através de ofício, que o valor pago seria de R$ 544 mil. No entanto, em 8 de dezembro do ano passado, Marcos Roberto Romero Sanches (representante da Cruz Vermelha gaúcha) já tinha assinado um contrato com o mesmo objetivo com a Devmed Soluções em Informática. Neste caso, o valor do software era de R$ 580 mil. O sistema nunca foi instalado.

Presidente da Cruz Vermelha gaúcha rebate acusações

                                                                        Nício Brasil Lacorte - Foto: Martha Kienast


DIARINHO – O senhor era quem tinha todo o controle das decisões administrativas do Ruth Cardoso, já que é o presidente da instituição que estava na gestão do hospital?
Nício Brasil Lacorte – A instituição CVB faz a designação de gestores específicos da área, admite técnico na condição de superintendente para conduzir os trabalhos das parcerias e não faz nada de diferente das outras organizações pelo país afora. Especificamente no Ruth Cardoso, a CVB-RS decidia junto com o órgão Central da CVB, cuja sede fica no Rio de Janeiro. Tanto nós como o prefeito [Edson Periquito (PMDB)] tínhamos competências e responsabilidades semelhantes: eu quando fiz a nomeação do superintendente e o prefeito quando nomeou toda a comissão de Acompanhamento e Avaliação do contrato de gestão, o Conselho Municipal de Saúde (Comus) e ainda o secretário de Saúde.

DIARINHO – Afinal, havia ou não irregularidades na administração do hospital?
Nício – Não havia e nem houve qualquer irregularidade na gestão do hospital. Quem teria, em menos de nove meses, tirado um hospital do zero se não fosse pelo compromisso e determinação de colocar para funcionar? Ainda, praticamente remando na contramão de forças com poder no município, que não desejavam que o projeto tivesse êxito. Sem dúvida alguma a população não estaria agora pagando uma conta extremamente cara, por conta da intervenção e da decisão do prefeito de internar pacientes do Ruth Cardoso em hospital privado da cidade, o que tem gerado um custo muito maior do que se ele tivesse ficado junto com a CVB-RS, dando suporte, apoio e acelerando a compra dos equipamentos que faltavam. O prefeito não se empolgou efetivamente com o projeto, preferiu polarizar com o secretário de Saúde [na época, José Roberto Spósito (PMDB)] e com nossa instituição. E a população foi quem saiu prejudicada nessa crise política do município em ano eleitoral. Nunca deixamos de dar ao prefeito qualquer tipo de informação que ele nos tenha solicitado.

DIARINHO – Alguém tirou vantagens com a verba que era destinada pela prefeitura para o Ruth Cardoso?
Nício – Desconheço o registro de qualquer vantagem pessoal dos recursos recebidos. Dentro das rubricas de gastos já direcionados na licitação foram executados e contabilizados e prestadas contas, centavo por centavo, de forma transparente. As contas bancárias foram abertas, entregamos todos os movimentos bancários. Agora, o que precisa ser respondido para a sociedade é por que as pessoas nomeadas pelo prefeito na Comissão de Acompanhamento e Avaliação, já que agora apontam para o prefeito tantas inconformidades, não fizeram isso há mais tempo? Se estão autodenominando-se de ingênuas, ou se não tinham conhecimento sobre os assuntos, porque aceitaram a missão?

DIARINHO – Por que quase R$ 1,5 milhão foi enviado para o Maranhão – entre filial da CVB e outras empresas?
Nício – Nenhuma instituição desenvolveria um projeto, em lugar algum do nosso país, sem qualquer tipo de remuneração de seus custos operacionais. A comissão aprovou que a CVB-RS fosse ressarcida pelos serviços prestados e o prefeito concordou efetuando pagamentos. Entretanto, agora, não quer admitir para a sociedade o que fez, e utiliza esses argumentos falaciosos, buscando fragilizar a CVB-RS e por isso responderá judicialmente. Os recursos disponíveis na conta administrativa da CVB-RS é por ela administrado com total liberdade, honrando os compromissos feitos para o projeto. No caso específico, o órgão Central repassou à CVB-MA o valor que a ela era devido, e ponto. A prefeitura não cumpriu com a totalidade dos pagamentos mensais e ainda quer questionar no que gastamos à parte. Vamos agora questionar todos os contratos da prefeitura de Balneário com empresas privadas e vamos então discutir o que elas estão ganhando e saber o que estão fazendo também com o dinheiro?

DIARINHO – Por que criaram duas contas bancárias na mesma agência da Caixa de Balneário Camboriú?
Nício – Tínhamos que apresentar uma conta para o município fazer o crédito da parcela que o mesmo tem obrigação de pagar por fora do contrato. Nessa conta, todos os movimentos são comprovados na prestação de contas mensal à prefeitura. Uma segunda conta para disponibilizar o valor do pagamento do serviço de administração do projeto, este da CVB, e de reservas para as questões trabalhistas futuras. Esta conta é movimentada com liberdade, pois o valor é pertence à CVB. Isso é praxe em todos os contratos dessa natureza.

Os bastidores do esquema milionário começam a ser revelados

A reportagem do DIARINHO foi para outro estado entrevistar João – um nome qualquer criado para manter em sigilo a identidade de alguém que, há mais de três anos, está envolvido com os projetos da Cruz Vermelha Brasileira, junto ao alto-escalão da entidade internacional. Dos bastidores, João observou como funcionava o esquema de desvio de verba pública. E resolveu contar tudo à reportagem do DIARINHO.

                                                                        Foto: David T. Silva


A quadrilha, segundo João

“São os quatro: Anderson Marcelo Choucino (que é o mentor, que foi o mais bem sucedido), o conselheiro dele, que é o Fernando José Mesquita (advogado já condenado a mais de 15 anos por causa do Ciap), Marcos Roberto Romero Sanches (que é cunhado do Fernando e amigo de Anderson Marcelo desde os tempos do Ciap) e M.F., que foi quem, especificamente em Balneário Camboriú, fez contato e achou que ia fazer a festa. Esta é a quadrilha. Cooptaram outras pessoas pelo caminho, mas o poder de decisão, a ação, o dolo, a vontade de desviar e fazer esquema reside nestas quatro pessoas”

O Centro Integrado de Apoio Profissional (Ciap) teria sido o berço do esquema. Dos quatro nomes mencionados por João, apenas o advogado Fernando José Mesquita estava entre os 16 indiciados pela Polícia Federal. No ano passado ele foi condenado a mais de 15 anos de prisão. Os outros três saíram ilesos e teriam migrado para outra entidade para dar sequência aos golpes. A escolhida foi a Cruz Vermelha.

DIARINHO – Como eles ficaram sabendo da licitação para ficar com a gestão do hospital municipal Ruth Cardoso? Foi tudo de forma lícita?
João – Aquela licitação já era vencida e quem tinha organizado todo o bastidor do processo licitatório foi o Marcos Sanches e o M.F., através de um intermediário – uma pessoa que se chamava Gobbo ou Boggo, que sempre estava acompanhada de Marcos Weissheimer (ex-secretário municipal de Administração). Para que essa pessoa facilitasse as coisas na prefeitura, ele cobrava uma propina de R$ 1 milhão. Dinheiro que deveria sair do superfaturamento do sistema de informação que seria comprado para o hospital de uma pessoa próxima a M.F.. [E essa pessoa que “facilitou” a licitação era da prefeitura?] É alguém de Balneário e com influência na prefeitura. O orçamento para o sistema de um hospital daquele porte é algo em torno de R$ 300 mil. E me lembro do M.F. dizendo que tinha de ser comprado com o Carlos Osti, que é um amigo dele, porque dessa compra é que teria de sair o dinheiro para pagar esse Gobbo ou Boggo. Na verdade, o dinheiro não iria virar nenhum sistema de informação. Ia só para pagar essa propina. Segundo o M.F., o cenário que fez com que a Cruz Vermelha fosse escolhida para gerenciar o hospital era este: a propina de R$ 1 milhão, com o intermédio desse Gobbo ou Boggo, participando desse esquema o secretário de Saúde, José Roberto Spósito, o presidente do Conselho Municipal de Saúde (Comus), Luiz Fernando Brito, e o gestor do Fundo, Rafael Schroeder. O Gobbo ou Boggo foi quem aproximou M.F. de Spósito. E ele dizia que não poderia ajudar o hospital, mas que poderia atrapalhar muito. Por isso ele tinha de ser pago. Pelo que o M.F. dizia, era uma pessoa com influência política na região. O M.F demonstrava ter medo desse cara. Ele ligava e falava “o hospital já vai abrir, e cadê o meu?”.

Na próxima edição, a série “O hospital Ruth Cardoso na UTI” continua. E a entrevista com João também, com mais detalhes sobre o Ciap, a migração do grupo para a Cruz Vermelha, o Maranhão e a participação de autoridades do município de Balneário Camboriú no esquema de desvio milionário. Todos os envolvidos estão sendo procurados para darem a versão deles à reportagem.

Reportagem publicada no jornal Diário do Litoral - DIARINHO
em 23 de junho de 2012

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