30 DE NOVEMBRO DE 1979
O dia em que SC encarou a ditadura militar
32 anos depois, personagens da Novembrada revivem a data histórica
nas páginas do DIARINHO
Texto: Cláudio Eduardo
Reportagem publicada no Jornal DIARINHO, em 30/11/2011
A ditadura militar calava. Ao final da década de 1970, ainda sob a fama dos “Anos de Chumbo”, a possibilidade de um presidente ser rechaçado em público beirava o insano. Com a certeza de receber sorrisos, mesmo que descontentes, João Figueiredo veio para Santa Catarina. O roteiro do general que comandava o país incluía visitas e homenagens. Ao lado do governador Jorge Bornhausen, o presidente começaria a saga por Florianópolis na busca por aplausos. Entretanto, não foi o que recebeu naquele 30 de novembro de 1979.
O manifesto organizado por um grupo de estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) se somou ao descontentamento do povo. Todos estavam fartos, cansados da liberdade de expressão estrangulada e dos preços que aumentavam descontroladamente. A Novembrada libertou o grito de “basta” entalado na garganta dos milhões de brasileiros descontentes com o regime militar.
Jorge Bornhausen e Esperidião Amin (dois políticos da Arena, na época) recepcionaram o presidente. Há quem atribua à dupla a tentativa de maquiar o clima hostil que predominava na cidade. No entanto, Amin desmente esta tese. Ao contrário, garante que alertou para a possibilidade de manifestações. “Em função das circunstâncias sociais, econômicas – inflação e carestia –, previ que iria acontecer algum protesto, julgando que o clima festivo que se pretendia dar à visita estava dissociado da realidade”, comenta.
Em 1979, Amin era deputado federal e secretário estadual dos Transportes e Obras. Ele diz que, na noite de véspera, durante um jantar com Marco Antônio Krammer, secretário de imprensa da Presidência da República, alertou sobre a possibilidade do manifesto e que jornalistas presentes no evento foram testemunhas disso. O alerta de Amin pode ter diminuído o fator surpresa do ato. Mas a participação maciça dos jovens deve ter deixado descrente parte do staff do governo. “As reações foram diversas. Prefiro não comentar a dos outros. A minha foi de espanto pelas dimensões e prolongamentos do episódio”, recorda.
Político experiente, Amin – que hoje é deputado federal pelo PP – já enxerga o evento de forma mais amadurecida. “Minhas impressões sobre a Novembrada têm evoluído ao longo do tempo. Na época, com 31 anos de idade, mesmo já tendo experiência política e administrativa, o episódio tinha um cunho romântico. Hoje percebo que fez parte do ciclo histórico que vivemos”, salienta. Além disso, Amin assegura que não houve qualquer precedente no país. “Foi o primeiro grande protesto popular que o Brasil daqueles anos testemunhou. No Brasil inteiro espalharam-se avisos do tipo ‘catarina que é macho!’, inclusive em parachoques de caminhão”, lembra o deputado.
Em entrevista a uma emissora de televisão local logo após o protesto, Amin afirmou que o ato, além, de previsível, era legítimo. Ele conta que, pela posição que tinha no governo, a fala caiu feito uma bomba. “Tenho muito orgulho de ter mantido minha postura. Coloquei o cargo de secretário à disposição do governador e fui indicado para ser testemunha de defesa dos estudantes que foram detidos, na época. Meu depoimento na Auditoria Militar, em Curitiba, os ajudou decisivamente, especialmente porque contextualizei o protesto referindo a situação política, econômica e social a uma decisão autoritária do governo federal”, relata. A tal decisão autoritária foi colocar uma placa de homenagem a Floriano Peixoto na praça 15 de Novembro, mesmo sabendo o quanto é polêmica (ainda hoje!) a troca do nome Desterro por Florianópolis – para reverenciar o “Marechal de Ferro”.
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“Foi o primeiro grande protesto popular que o Brasil daqueles anos testemunhou. No Brasil inteiro espalharam-se avisos do tipo ‘catarina que é macho!’, inclusive em parachoques de caminhão”
Esperidião Amin
Organizador do manifesto recebe voz de prisão por chamar prefeito da capital de corrupto
Em 1979, Amilton Alexandre estudava Administração na UFSC. Hoje é jornalista, o popular Mosquito. Mas se a área de atuação não é a mesma de 32 anos atrás, o engajamento em questões políticas não mudou. Ele foi um dos organizadores da Novembrada. Amilton foi o responsável pela confecção de panfletos e faixas. “Sabíamos que já tinham ocorrido algumas manifestações contra o aumento da gasolina. Então resolvemos protestar também pedindo eleições e contra a situação de carestia da época. Era um movimento do tipo reivindicatório”, destaca.
Amilton foi um dos sete estudantes enquadrados e julgados pela Lei de Segurança Nacional. Ele foi preso no dia 30 de novembro. A prisão gerou uma série de outros manifestos nos dias seguintes. “Ficamos 10 dias presos. Recordo do primeiro dia, ainda na carceragem da polícia Federal, no bairro Estreito. Foram mais de 10 horas trancado num cubículo, incomunicável”, lembra.
Na visão do jornalista, hoje prevalece o individualismo – o que minimiza as chances de qualquer manifestação semelhante à que foi a Novembrada. “Os movimentos políticos migraram para as redes sociais. Tem muito estudante preocupado com o meio ambiente e com a desigualdade social. Mas falta unidade e lideranças que assumam a dianteira dos movimentos estudantis”, avalia. Três décadas depois do protesto, o cenário político mudou. “Hoje vivemos num regime democrático. Apesar de algumas distorções, existe liberdade política”, conclui.
História repetida
Aos 52 anos, Amilton não perdeu o ímpeto. Na última sexta-feira, ele teve a prisão decretada. Só não foi para a cadeia no mesmo instante porque a prisão foi relaxada na mesma hora, por ser considerado um crime de efeito menor. O crime: chamar o prefeito de Florianópolis, Dário Berger (PMDB), de corrupto. “Foi só um circo que os caras montaram. O promotor perguntou se eu confirmava que o Dário era corrupto e eu disse que sim. Aí o promotor pediu a prisão em flagrante. Como o processo em que ele foi condenado não está transitado em julgado, eles não consideram que ele seja corrupto. O que é um absurdo”, opina. Mesmo assim, Amilton não pretende se calar.
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Adolescentes de Itajaí acabaram presos durante as manifestações na capital
De curiosos, quatro estudantes de 17 anos foram parar num camburão. E depois, nos autos da história catarinense. Os adolescentes tinham deixado Itajaí fazia duas semanas. Eles se hospedaram numa pensão no centro de Florianópolis para ficar no período em que fariam um cursinho pré-vestibular. Todos queriam entrar na UFSC. Aristides Umbelino da Costa Júnior era um deles. “Naquele dia 30 fomos para a aula, mas nos dispensaram por causa da vinda do presidente. Então fui com um amigo lá ver. E foi isso, só olhamos o tumulto”, conta.
Mas com a prisão dos sete estudantes – o grupo em que Amilton Alexandre estava incluído e do qual Esperidião Amin foi testemunha de defesa – aconteceram protestos depois daquele último dia de novembro. Foi num destes manifestos posteriores que Aristides e os outros três estudantes de Itajaí foram parar numa saleta do DOPS – o temido Departamento de Ordem Política e Social. Hoje com 49 anos, ele ainda recorda os detalhes, desde a prisão até a liberdade horas depois.
“Vimos na televisão que estava acontecendo mais um protesto. Já era noite, mesmo assim fomos dar uma olhada, porque adolescente não tem medo. Quando chegamos, a praça já estava cercada. Tinha faixas caídas na escadaria da igreja matriz. Conseguimos uma brecha e passamos pela cavalaria. Queríamos ler o que estava escrito nas faixas largadas na escadaria”, conta. Assim que os quatro encostaram nas faixas, alguém gritou: “eles vão começar de novo!”. Não foi preciso gritar duas vezes. Jogaram os estudantes no camburão. A curiosidade custou caro.
Aristides lembra que a madrugada que passaram no DOPS foi terrível. “Um policial perguntou quantos anos nós tínhamos. Depois disse que a gente tinha sorte por só termos 17 anos. Nós estávamos tremendo. Lá a gente ouvia gritos, era horrível”, ressalta. Ele disse que foi separado dos amigos. Cada um teria de explicar a situação, mas em depoimentos individuais. “Lembro da fatídica entrevista com o delegado. Uma sala escura, com luz na cabeça. Foi uma pressão psicológica terrível. Ele ficou cinco minutos em silêncio, apenas olhando pra minha identidade, o que aumentava a pressão”. Antes mesmo de ouvir o ríspido “o que tu tava fazendo lá?”, Aristides já tremia.
“Apareceu o deputado Murilo Canto e outro do MDB pra defender a gente. Eles serviram de advogados para nós, que estávamos perdidos em Florianópolis. Depois de toda a pressão, nos soltaram durante a madrugada”, relata. Aristides conta que, no dia seguinte, o nome deles estava estampado num jornal estadual. Em Itajaí, a notícia era repetida o tempo todo na rádio. “Quando voltei para Itajaí, no fim de semana, achei que iam me xingar. No final, o pessoal me parava na rua para parabenizar”, relembra.
Passado aquele período, Aristides acabou o cursinho e conseguiu entrar para a mesma universidade daqueles que organizaram os protestos. Ele se formou em Computação, chegou a trabalhar em departamentos do governo estadual – pondo fim à desconfiança de que seria perseguido – e hoje é empresário em Itajaí. Da Novembrada ficaram as memórias. Mesmo que ele esqueça, o nome não será apagado da história recente: ele foi um dos milhares de jovens de Santa Catarina que romperam o silêncio durante o regime militar.